O nome da escrava era Constância de Angola, sendo ela considerada legalmente propriedade dos donos da Fazenda Boa Esperança, então localizada no município de São Mateus, área hoje integrante do território chamado de Serra de Cima, no Espírito Santo. No ano de 1880 a mulher teve um bebê que foi retirado dos seus braços e jogado dentro de uma fornalha de fazer farinha. A ordem para tal atrocidade, que foi cumprida pelo feitor Zé Diabo, partiu de sua senhora, Francelina Cardoso Cunha, que era cunhada do Barão de Aymorés. O motivo foi o fato de a criança chorar muito e com isso incomodar os ouvidos sensíveis da branca.

Desesperada com a morte brutal do menino, Constância jurou vingança. Isso fez com que fosse amarrada e açoitada no tronco. Ambos os fatos chegaram ao conhecimento de Viriato Cancão de Fogo, um guerreiro negro do Vale do Cricaré, que decidiu realizar uma ação de resgate, libertando a escrava e a levando para o quilombo do qual ele era líder. Foi lá que ela também se tornou uma grande lutadora, aprendendo capoeira e adquirindo uma habilidade incomum com o uso de facas. Com isso passou a integrar grupos de enfrentamento aos capitães do mato, na luta para libertar seu povo.

Por uma triste coincidência do destino, ela acabou morta em uma dessas muitas escaramuças. E tombou justamente pelas mãos do assassino do seu filho. Mas, antes de morrer ela também o feriu de morte, levando o feitor consigo. O corpo da negra foi sepultado em um cemitério existente na Fazenda Cachoeira do Cravo. Quanto à Francelina, essa faleceu anos depois, no município de Nova Venécia, depois de passar longo tempo reclusa, sempre temendo uma revolta dos escravizados ainda em função de ter ordenado a execução da criança.

Histórias extremas como essa existem às centenas em nosso país. Mas, ter acesso a elas é menos fácil do que deveria ser. Toda a trajetória do povo negro e da real contribuição dada por ele para o desenvolvimento do nosso país enfrentam uma invisibilização proposital. Acontece o mesmo com a bestialidade da escravidão, que em muitos relatos aparece maquiada. Em janeiro de 2003 foi aprovada uma lei que determinava que houvesse a inclusão temática de “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial dos ensinos fundamental e médio. Isso nunca chegou a ser cumprido integralmente.

Na atualidade os feitores são outros. Entretanto, o povo negro continua sendo açoitado se não pelo chicote pelo desrespeito, pelo inominável ódio dos racistas, pela falta de oportunidades iguais na educação e no trabalho. Não está nas senzalas, mas habita em sua imensa maioria as áreas periféricas; é quem menos assistência recebe; mais ocupa as prisões; e lidera as estatísticas de mortes violentas, boa parte das quais praticadas por representantes do Estado cujo dever precípuo seria justamente o de garantir a segurança de todos os cidadãos. O Brasil contemporâneo tem um tanto mais de pudor e não joga bebês dentro de fornalhas. Mas, bota fogo em moradores de rua, como se a sua desgraça já não fosse o bastante. E segue tentando anular as poucas ações de reparação que foram conquistadas nas últimas décadas, como as cotas para acesso aos cursos superiores.

Convêm fazer outro registro histórico sobre o Vale do Cricaré. Foi lá que ocorreu um dos mais sangrentos massacres de índios Aimorés e Tupis por parte dos portugueses. Foi no Século XVI, em um ponto que hoje tem o nome de Meleiras, ficando próximo ao encontro de dois rios: o Mariricu e o São Marcos. Seis embarcações partiram de Porto Seguro, rumo ao Espírito Santo para o ataque. Os nativos tinham três fortificações e duas delas foram destruídas, antes dos invasores baterem em retirada. Com armas primitivas como arco e flecha, tacape e bordunas, reagiam contra o fato de serem escravizados para o trabalho em engenhos e terem suas mulheres estupradas.

19.07.2024

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