TRILHANDO EMOÇÕES

A trilha sonora de um filme é essencial para a criação da atmosfera que a narrativa pretende transmitir. Apenas imagens, por mais fortes e precisas que possam ser, em termos de escolha e de recursos técnicos, jamais serão suficientes sozinhas. E essa percepção se tem desde a época do cinema mudo, tanto que as projeções eram acompanhadas por músicos que, ao vivo e tocando próximo da tela, davam essa contribuição. Não por outro motivo, essa arte é chamada de audiovisual.

Alguns diretores fazem uso de músicas já existentes, mas hoje em dia, em grandes produções, a trilha sonora é especialmente composta. Isso, quando bem feito, garante uma simbiose mais perfeita, ajustando imagens e sons de tal forma que um potencializa o outro. Não se pode sequer imaginar uma cena de suspense, por exemplo, sem que a tensão seja trazida para a tela antes do clímax, pela música escolhida. Assim, todo espectador sabe o risco que o personagem está correndo, antes dele próprio se dar conta. É algo mais indispensável do que a famosa pergunta “há alguém aí?”.

Importante salientar que a trilha sonora não é a sonoplastia como um todo. Essa inclui a própria captação da fala de atores e atrizes, bem como ruídos incidentais: freadas de automóveis, explosões, baques, ranger de portas, a chuva que cai, o vento que sopra e muito mais. Ou seja, toda a questão semiótica. Mas é a música romântica que antecede os beijos apaixonados; como outras que refletem a dor das ausências, afastamentos e perdas; o drama das derrotas; a alegria das conquistas.

O primeiro filme brasileiro com som foi Acabaram-se os Otários, de 1929. Nele é ouvida a voz inconfundível de Pixinguinha, cantando Carinhoso. Também se pode destacar Orfeu Negro, que teve a música Manhã de Carnaval, interpretada por Agostinho dos Santos, ambas as expressões artísticas alcançando sucesso internacional. Outros bons exemplos, mais recentes? Em Aquarius, a protagonista Clara (Sônia Braga) tem toda a sua história contada com músicas que marcaram a vida. Algo de fato muito orgânico, com Hoje (Taiguara); Um Jeito Estúpido de Te Amar (Maria Bethânia) e Nervos de Aço, uma das obras primas do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, na voz de Paulinho da Viola.

Em Bicho de Sete Cabeças a nossa é feita muito em função de Zeca Baleiro, que compôs com genialidade a música tema que levou o mesmo nome do filme. Mas ele ainda nos oferece a ótima Fora de Si, de Arnaldo Antunes, totalmente integrado com a narrativa, que conta a história de um jovem internado em hospício por seu próprio pai. Tudo foi baseado no livro Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano Bueno. E finalizo com mais um exemplo nacional: Lisbela e o Prisioneiro, filme de Guel Arraes, uma adaptação de peça de teatro de Osman Lins. Esse nos oferece Você Não Me Ensinou a Te Esquecer, de Caetano Veloso; A Dança das Borboletas, numa interpretação improvável com Zé Ramalho e Sepultura; Lisbela, com Los Hermanos; e Espumas ao Vento (Elza Soares). Ou seja, uma trilha que tem vida própria no universo da nossa arte, num filme que também por ela merece ser visto e revisto.

07.05.2022

Trilha sonora é essencial nos filmes

No bônus musical de hoje temos Renato & Isamara, casal que forma o Duo Medley, interpretam trechos de uma série de filmes que foram trilhas sonoras de filmes norte-americanos dos anos 1980 e 1990. Abaixo os nomes dos filmes, em negrito, com os nomes das músicas postos entre parênteses logo depois.

Top Gun – Ases Indomáveis (Take My Breath Away), A Dama de Vermelho (I Just Called To Say I Love You), Flashdance – Em Ritmo de Embalo (What a Feeling), Quatro Casamentos e Um Funeral (Love Is All Around) , Rocky (Eye Of The Tiger), Ghost – Do Outro Lado da Vida (Unchained Melody), Karatê Kid (Glory of Love), Highlander (Who Wants to Live Forever), Falcão – O Campeão dos Campeões (In this Country) Mad Max – Além da Cúpula do Trovão (We Don’t Need Another Hero), Jovens Demais Para Morrer (Blaze of Glory), Meu Primeiro Amor (My Girl), Cidade dos Anjos (Angel), 9 e ½ Semanas de Amor (Slave to Love), Uma Linda Mulher (Pretty Woman), Dirty Dancing – Ritmo Quente (The Time of My Life), Quanto Mais Idiota Melhor (Bohemian Rapsody), O Guarda Costas (Will Always Love You), Conte Comigo (Stand By Me), Ruas de Fogo (Nowhere Fast), Titanic (My Heart Will Go On), De Volta Para o Futuro (The Power of Love), Os Caça-Fantasmas (Ghostbusters), Os Goonies (The Goonies “R” Good Enough), Clube dos Cinco (Don’t You – Forget About Me)

DICA DE LEITURA

HISTÓRIA DO CINEMA MUNDIAL, de Franthiesco Ballerini (320 páginas)

Fruto de três anos de profundas pesquisas, esse livro traz um viés inédito para o estudo do tema: o enfoque geográfico e cultural da sétima arte. Na primeira parte do livro, o autor explica como se formaram as principais indústrias cinematográficas do mundo, como Hollywood e Bollywood. Em seguida, passeia pelos movimentos cinematográficos mais emblemáticos do planeta – como o Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Na terceira parte, o autor faz uma análise do melhor cinema feito em cada continente, especificando aspectos culturais, estéticos e de linguagem.

Utilizando o didatismo que lhe é característico, Ballerini se dirige a estudantes de artes e comunicação, profissionais do cinema e do audiovisual, professores e artistas, além do público geral interessado no tema. Na obra, o leitor também encontrará: pequenas sinopses dos filmes mais importantes; curiosidades sobre os bastidores da indústria cinematográfica; listas com os filmes essenciais; lindas fotografias que ajudam a contar a história de cada capítulo; índice onomástico composto por todas as películas citadas e por diretores, atores e produtores.

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SETE CABEÇAS MAIS A MINHA

Ouvi há pouco mais uma vez a música Bicho de Sete Cabeças, melodia de Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, com letra de Renato Rocha, na voz de Zeca Baleiro. É fácil encontrar na internet, mas a versão melhor não é de gravação ao vivo e sim em estúdio. Fica muito mais introspectiva e forte. É curta e devastadora, em especial se você também já assistiu o filme de Laís Bodanzky que leva o mesmo nome e a usa na trilha sonora. Porque, neste caso, o som age como uma chave que abre memórias afetivas intensas, que remete a uma história dolorosa que a diretora contou tão bem.

O filme é um drama realizado no ano 2000, feito com base no livro Canto dos Malditos, autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno. Conta a história real de um jovem que é internado em um hospital psiquiátrico porque seu pai encontrou um cigarro de maconha no seu bolso. Na instituição o rapaz passa por inúmeras situações abusivas, sendo verdadeiramente torturado na busca da “cura”. No papel principal está Rodrigo Santoro, numa atuação precisa e convincente. Cássia Kiss Magro e Othon Bastos estão em outros papéis centrais. A distribuição foi da Columbia e a recepção pelo público e pela crítica, excelentes. Tornou-se o filme mais premiado nos festivais de Brasília e de Recife, ganhou o troféu da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte, levando também o Grande Prêmio Cinema Brasil e recebendo várias outras indicações.

Pela oportunidade do tema, o filme acabou adotado pelos integrantes da luta antimanicomial, que ainda batalhavam pelo fechamento das instituições psiquiátricas tradicionais e sua substituição por serviços que pudessem de fato oferecer atenção integral e possibilitar a reinserção social dos pacientes. No Rio Grande do Sul já haviam conseguido legislação nesse sentido, no ano de 1992. O que só seria seguido, em âmbito federal, nove anos depois. Ou seja, após a exibição do filme. Na época do seu lançamento ainda existia distância considerável entre os textos legais e a realidade. O que infelizmente ainda ocorre hoje em dia, em certo nível, havendo quem justifique e defenda a internação e a medicação como únicos tratamentos resolutivos, mesmo sendo isso não raras vezes desumano.

O filme entrou, em novembro de 2015, na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), que elencou os cem melhores de todos os tempos, entre os realizados em nosso país. E a música, essa tem uma história pitoresca, protagonizada pelos compositores. Geraldo Azevedo relatou que ele e Zé Ramalho haviam se dedicado muito na sua elaboração. Algo feito com muito cuidado, minuciosamente, a tal ponto que o paraibano Zé se apaixonou pela obra, que era apenas instrumental. E quando, sem que este soubesse, Geraldo autorizou o carioca Renato Rocha a colocar nela uma letra, seu colega se revoltou. Odiou mesmo o resultado e se recusava a aceitar a sua exibição. A solução conciliatória foi rebatizar o trabalho: quando na versão original, que se chamava Dezesseis Cordas – foi composta com dois violões, um de seis e outro de dez cordas, misturando música clássica, choro e música moura –, ela passou a ser Bicho de Sete Cabeças I. E quando com letra, Bicho de Sete Cabeças II. Assim é que foram registradas depois, quando do lançamento de um disco coletânea, o Minha História. Mas o que realmente importa – e duvido que isso tenha desagradado a quem quer que seja – é que ela se tornou verdadeiro hino.

“Não dá pé/ Não tem pé, nem cabeça/ Não tem ninguém que mereça/ Não tem coração que esqueça/ Não tem jeito mesmo/ Não tem dó no peito/ Não tem nem talvez/ Ter feito o que você me fez/ Desapareça/ Cresça e desapareça/ Não dá pé, não é direito/ Não foi nada/ Eu não fiz nada disso/ E você fez um bicho de sete cabeças”. São esses os versos que, embaralhados, são repetidos em mais de uma ordem na música, sempre com nexo, sempre gritando. Como Santoro grita tantas vezes no filme, negando crime, pedindo socorro. Versos com os quais Zeca Baleiro fecha a narrativa, sem dúvida com chave de ouro. A música e o filme falam em sete cabeças. Mas desde que conheci ambos, são oito: fizeram também a minha.

11.04.2020