O homem tinha 45 anos e diagnóstico de esquizofrenia, uma doença mental grave. Sua profissão era caminhoneiro, o que já me surpreende e assusta, uma vez que em um mundo ideal ele jamais poderia ter uma CNH – Carteira Nacional de Habilitação, para condução de veículos pesados. Vá que durante o trabalho ele tenha um surto e use o caminhão como arma, no trânsito? Pior do que isso: graças ao ex-presidente Jair Bolsonaro e sua sanha armamentista, ele conseguiu se inscrever como CAC, sigla para Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador – não me perguntem porque a letra “D” não teve o direito de estar na sigla, mas eu suspeito que seja porque é a inicial de “democracia”. Com tal permissão concedida, possuía várias armas e muita munição em casa. Portanto, ele era potencialmente o causador de uma tragédia facilmente previsível e nada do que aconteceu dias atrás, em Novo Hamburgo, pode ser visto como algo fora da curva.

Se você nunca soube, ou se soube e não lembra, esclareço aqui. Depois que o “Capetão” assumiu a presidência, qualquer pessoa abrigada nesse guarda-chuva suspeito podia adquirir legalmente a absurda quantidade de 60 armas de fogo, de diferentes calibres, sendo 30 delas as que eram chamadas de “uso restrito” – essas que antes só podiam ser utilizadas legalmente por membros de instituições da segurança pública e das nossas Forças Armadas. Além disso, ficaram os CACs autorizados a adquirir, cada um deles e por ano, 150 mil munições para as de uso comum e mais 30 mil munições para as até então de uso restrito. Isso são 180 mil cartuchos a cada ano. Ou seja, se fizessem uso de todas elas, cada um poderia dar mais de 490 tiros por dia (180.000 ÷ 365).

Édson Fernando Crippa – esse era o nome da bomba-relógio humana que explodiu no bairro Ouro Branco – gastou apenas cerca de 300 dos cartuchos que tinha em seu poder. Depois que conseguiram entrar na residência onde ele estava, os policiais que atenderam a ocorrência encontraram quantidade um pouco maior do que essa, ainda intacta. Mas, o grande problema nem foi o número de disparos feitos por ele, antes de terminar abatido: foi a precisão. Porque atirava muito melhor do que a maioria daqueles que eventualmente entram em confronto com a Brigada Militar. Tanto que matou dois dos policiais (Éverton Kirsch Júnior e Rodrigo Weber Volz, ambos com 31 anos) e feriu outros cinco, além de um guarda municipal. Também abateu dois drones que estavam sendo usados para monitorar a situação.

O caso começou com uma denúncia de cárcere privado. Consta que o atirador não deixava seus pais saírem de casa, onde se encontravam também o irmão dele e a cunhada. A reunião seria para comemorar o aniversário da mãe. Segundo as apurações preliminares, ao ser confrontado pela viatura que compareceu ao local, houve reação a tiros. Além dos dois policiais e do próprio atirador, também morreram o pai e o irmão de Édson e ficaram feridas a mãe e a cunhada. Esses quatro teriam sido também vítimas dos seus disparos. E aí tem algo que ainda precisa ser confirmado, porque se ele atirava tão bem, como não foram vítimas fatais as duas mulheres?

Enfim, dúvidas à parte, a questão é que um doente mental tinha em seu poder uma Pistola Taurus PT111G2, calibre 9mm; um rifle calibre 22; e uma pistola ponto 380. Tudo registrado e legal, graças à liberação que um outro desequilibrado permitiu. Então, mesmo que pareça equivocado voltar ao assunto, vários dias depois do ocorrido, fazer isso é propor que se volte ao debate. Depois de assumir, Lula conseguiu restringir em parte o “liberou geral” de antes. Agora são permitidas entre quatro e 16 armas e de quatro a 20 mil munições por ano, tendo também voltado o uso restrito de algumas delas. O que ainda é inadmissível, um absurdo e insuficiente para atender aos anseios dos sensatos. Não ficou melhor devido à ação da chamada “Bancada da Bala”, composta por deputados e senadores que são financiados pelos fabricantes de armas.

Precisa ser ainda rediscutido o modo como são avaliados aqueles que buscam se tornar CACs e adquirir armamento. A legislação exige uma avaliação psicológica, com laudo de aptidão mental, renovado a cada dois anos – a bancada bolsonarista queria que fosse a cada dez, mas não conseguiu passar a proposta. Édson havia sido internado quatro vezes devido à doença. E tinha contra si boletim de ocorrência por ameaça. Quem o aprovou, mesmo assim, não precisa ser responsabilizado? Essa pessoa contribuiu diretamente com a morte daqueles que foram vítimas do atirador.

Durante os anos de Bolsonaro na presidência houve um crescimento de 665% no registro de CACs. Chegaram a quase 800 mil. Agora, calcule o número hipotético de tiros diários que esse grupo poderia disparar, continuando com aqueles dados que apresentei acima: 800.000 x 490 significaria nada menos do que 392 milhões de balas voando pelos ares, em números aproximados. Se fossem mesmo caçadores, seria a extinção completa de todas as espécies conhecidas – certamente a começar pela humana.

Isso tudo é irreal, mentiroso. O que os fascistas queriam era armar um exército paralelo, que teria mais poder de fogo do que as próprias Forças Armadas, também cooptadas. E, quem gosta de estatísticas, pode ver nos registros oficiais que entre 2019 e 2024 o número de crimes que foram cometidos por CACs aumentou em mais de 1.000%. Também foi por intermédio deles que muitas quadrilhas conseguiram mais armas e por preço menor. As armas de Édson, compradas pela facilitação feita pelo discurso fácil de “proteger a família”, acabaram com a dele.

E ninguém da Bancada da Bala se solidarizou, depois do ocorrido, com familiares dos soldados mortos em Novo Hamburgo. O policial militar Alberto Fraga, por exemplo, deputado federal e colega de farda dos que tombaram em serviço, que foi o relator do projeto que facilitou a posse de armas, ficou em silêncio. Como também ficaram todos os demais – são pelo menos mais 15, entre os bem atuantes – a imensa maioria do PL, com alguns integrantes do União Brasil e do MDB. Nenhum demonstrou sensibilidade pelo fato de o policial Everton Kirsch Júnior ter deixado um filho com apenas 45 dias de vida, além da esposa. O pai deste bebê ganhava pouco e trabalhava protegendo vidas; ganham fortunas esses deputados e senadores que agem facilitando que vidas sejam ceifadas.

02.11.2024

PM Everton Kirsch Júnior deixou esposa e um filho de apenas 45 dias. Foto: Reprodução/RBS TV

Você gosta de política, comportamento, música, esporte, cultura, literatura, cinema e outros temas importantes do momento? Se identifica com os meus textos? Se você acha que há conteúdo inspirador naquilo que escrevo, considere apoiar o que eu faço. Contribua por meio do PIX virtualidades.blog@gmail.com ou fazendo uso do formulário abaixo:

Uma vez
Mensal
Anualmente

FORMULÁRIO PARA DOAÇÕES

Selecione sua opção, com a periodicidade (acima) e algum dos quatro botões de valores (abaixo). Depois, confirme no botão inferior, que assumirá a cor verde.

Faça uma doação mensal

Faça uma doação anual

Escolha um valor

R$10,00
R$20,00
R$30,00
R$15,00
R$20,00
R$25,00
R$150,00
R$200,00
R$250,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente

O bônus de hoje é bastante diferente de tudo o que já foi posto até hoje neste blog. Ofereço a Marcha Fúnebre Virgínia. Esta composição foi encontrada em Ouro Preto, nas Minas Gerais, sendo anônima. Passou a ser executada na procissão da Sexta-Feira da Paixão. A gravação deste clipe é com a Orquestra Ouro Preto – parte das cenas foram feitas em Mariana –, sendo também a marcha incluída em seu álbum Latinidade: Música para as Américas. Regência e direção artística são do maestro Rodrigo Toffolo. Aliás, texto e bônus estão alinhados com o Dia de Finados, que ocorre hoje.


Descubra mais sobre VIRTUALIDADES

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário