Um açougueiro que estava fechando seu estabelecimento, ao final de um dia de trabalho, é surpreendido por mais uma cliente. Essa solicita que lhe veja um frango. Ele abre o freezer e se depara com a única unidade que sobrara. Mostra para ela que aprova e pergunta o peso. Na balança, pouco mais de um quilo e meio. A mulher então solicita que veja outro, um pouco maior. Ele, para não perder a venda, sorrateiramente coloca e retira a mesma peça do interior do equipamento gelado. Na hora de pesar, pressiona junto com o frango o seu dedo na bandeja: ficam dois quilos exatos e a mulher aprova. Ele sorridente e acreditando que saíra ganhando com sua malandragem, vai embrulhar o produto quanto ela declara, categórica, que vai levar os dois.

Há uma diferença sutil entre esperteza e malandragem. O sujeito que é esperto pensa rápido, se safa de problemas, beneficia-se em negócios sem que necessariamente logre os outros. Para quem é malandro se pode citar qualidades semelhantes, mas com a tendência de que faça uso de artimanhas que não raro são ilícitas. Se um usa engenhosidade e sutileza, o outro se apoia mais nas chances de manipulação. O malandro tem carisma, destreza e lábia. O esperto se faz sem que para tanto seja desonesto. O malandro age mais no sentido do resultado, mesmo que isso custe perdas e danos para alguém. A lei que ele mais segue – talvez a única – é aquela que ficou conhecida como sendo a de Gerson: levar vantagem em tudo. Claro que estes conceitos partem de posições não muito claras, uma vez que o limite, a divisa entre as ações de um e outro são muito tênues.

E tem ainda o jeitinho, que se popularizou antecedendo “brasileiro”. Isso é injusto, porque fora do nosso país ele também acontece. Não é apenas nosso o comportamento. Mas, esse é um “drible” nos caminhos normais, uma voltinha para escapar de exigências. Ou da legislação. De qualquer modo, o jeitinho está mais perto da esperteza do que da malandragem. Isso porque ele é usado para facilitar a vida de alguém, sem que ocorra necessariamente a quebra da integridade de indivíduos e instituições, que na malandragem via de regra são lesadas. Juridicamente, esta é dolosa, uma vez que o malandro engana o “otário” – adjetivo que ele usa para identificar a vítima, que não percebe estar sendo enganada.

Agora, malandro não é apenas aquele indivíduo de pouca ou nenhuma influência e peso na sociedade. O estereótipo antigo do carioca com sua camisa listrada e chapéu de palha ou panamá, calça branca e sapatos em dois tons, surgido na primeira metade do Século XX. Um boêmio que vive de pequenos golpes, sendo mesmo assim sensível e sentimental. Um cavalheiro galante e até mesmo amante invejado pelos outros. Esse está carregado de romantismo e foi incluído e imortalizado nas letras de muitos sambas. Há muitos malandros – talvez hoje mais do que nunca – que frequentam as páginas sociais, que transitam na política, se vestem com grifes caras, fazem viagens maravilhosas e têm contas bancárias bem gordas.

Se temos os malandros que manipulam as cartas, levando sem merecer o total de uma rodada de apostas, existem também os que sonegam os impostos. Se temos os que arranjam atestados para fugir do trabalho, há patrões que não pagam seus funcionários como deveriam, não recolhem Fundo de Garantia e outros que tais. Se tínhamos no passado batedores de carteira, passamos para safados de colarinho branco e chegamos, pelo menos desde 2019, a bandidos que roubam uma parte das parcas aposentadorias de quem trabalhou anos a fio.

Os “empresários” do jogo de bicho são exemplos da institucionalização da malandragem. E sua atividade, mesmo que tenha uma aparência um tanto pueril, termina por alimentar a criminalidade. A peça teatral escrita por Nelson Rodrigues (1912-1980) e publicada em 1959, “Boca de Ouro”, oferece um perfil realista do bicheiro, mostrado como orgulhoso, vaidoso, generoso por demagogia, mas temível e até psicótico. Em 1978 Chico Buarque de Holanda escreveu outra, a “Ópera do Malandro”, carregada de bom-humor e muito precisa. Nela o malandro é um bonachão, bon vivant, contrabandista e criminoso. Ainda recomendo a coleção de contos escritos por Jorge Amado (1912-2001) e publicada em 1964 com o título “Pastores da Noite”. Neles se tem aquele retrato romântico que já citei acima, com arruaceiros de bom coração. Leitura merecida pela qualidade do texto.

Felizmente, vez por outra alguns destes personagens escorregam na própria malandragem. Como o açougueiro da abertura. Perdeu na certa uma freguesa e o bom nome que talvez tivesse na praça. Vendeu tudo por meia dúzia de reais que pretendia lucrar a mais. E nem os recebeu.

31.05.2025

O dançarino Carlinhos de Jesus caracterizado como um clássico malandro carioca

Você gosta de política, comportamento, música, esporte, cultura, literatura, cinema e outros temas importantes do momento? Se identifica com os meus textos? Se você acha que há conteúdo inspirador naquilo que escrevo, considere apoiar o que eu faço. Contribua por meio do PIX virtualidades.blog@gmail.com ou fazendo uso do formulário abaixo:

Uma vez
Mensal
Anualmente

FORMULÁRIO PARA DOAÇÕES

Selecione sua opção, com a periodicidade (acima) e algum dos quatro botões de valores (abaixo). Depois, confirme no botão inferior, que assumirá a cor verde.

Faça uma doação mensal

Faça uma doação anual

Escolha um valor

R$10,00
R$20,00
R$30,00
R$15,00
R$20,00
R$25,00
R$150,00
R$200,00
R$250,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente

O bônus de hoje é um clipe que apresenta o samba-enredo do Salgueiro no ano de 2016: A Ópera dos Malandros. Ele foi composto por Marcelo Motta, Fred Camacho, Getúlio Coelho, Ricardo Fernandes, Francisco Aquino e Guinga. 


Descubra mais sobre VIRTUALIDADES

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário