Andei vendo um vídeo na Internet, que foi postado pela professora de filosofia Lúcia Helena Galvão Maya. Ela ganhou muito espaço nas redes sociais, principalmente a partir da época da pandemia, que nos tornou todos reclusos. Nesse que vi – são muitos – ela faz uma analogia, partindo de uma situação imaginária: alguém entra em uma sala com uma lanterna mágica, que permite enxergar nas pessoas que nela estão apenas aquele pedaço que interessa a quem com ela estava nas mãos. E não necessariamente os seus atributos físicos, mesmo que estes também. Vê, por exemplo, se quem está sendo iluminado é importante o suficiente para lhe ajudar com influência; se tem recursos financeiros para financiar algum desejo seu; se há beleza que lhe atraia de algum modo.

Esse portador da lanterna que eu aqui chamo de mágica – ela no vídeo não faz isso – só é capaz de enxergar o que lhe interessa pessoalmente e nada mais. Ela inclusive ilustra essa postura com uma frase de Leon Tolstói: “Há quem passe por uma floresta e veja apenas lenha para sua fogueira.” Essa visão utilitária, meramente interesseira, no máximo consegue nos mostrar fragmentos da realidade. E evidencia que, diante dela, se uma pessoa não tem nada que interessa ao observador, pode ser totalmente despercebida. É invisibilizada.

Sobre isso existiria um relato, também possível de ser encontrado na internet, de experimento feito por um professor universitário. Como não foi possível localizar tal postagem, nem ela nem eu podemos confirmar a veracidade. Mas, ele teria tirado uma licença sabática para fazer esse estudo. Uma vez afastado das atividades docentes, o pesquisador buscou emprego em uma empresa de limpeza que prestava serviço no mesmo campus onde ele trabalhava. Com roupa de gari, ele passou a frequentar o mesmo espaço de antes, sem ser reconhecido nem pelos estudantes nem pelos colegas. Isso se explica pelo simples fato de que ninguém olha para o rosto das pessoas simples, em serviço que, mesmo sendo essencial, é socialmente considerado desimportante.

O gari não existe porque não tem nada que possa oferecer, em termos de capital social. Ninguém consegue se imaginar tendo sequer uma única vantagem advinda de um relacionamento interpessoal com ele. Não é um cidadão: se trata apenas de mão de obra. É um exemplo típico da coisificação do ser humano, levada a efeito cotidianamente.

No mesmo vídeo em questão, Lúcia Helena propõe que se veja os outros não pela claridade insuficiente da lanterninha, mas pela luz do Sol. Nisso ele representaria – segundo consegui depreender –, com sua grandeza, luminosidade abrangente e calor, a ideia do próprio bem. Seria assim uma proposta revolucionária, de inversão da realidade. O olhar para os semelhantes com um pensamento oposto, com questionamentos como “o que eu posso fazer para te beneficiar?”, “o que eu posso fazer para contribuir com tua trajetória, no sentido de te auxiliar a se tornar um ser humano melhor?”.

A professora lembra que, nos momentos em que se está precisando fazer um desabafo, procuramos um amigo confiável. Ninguém, em sã consciência, faz revelações para um manipulador, um desafeto, alguém que poderá usar essas informações mais tarde. E a natureza também agiria de forma semelhante – na verdade, nós a copiamos e não o contrário –, tendo uma conduta generosa. Ela se abre e revela os seus mistérios para o coração dos verdadeiros sábios, uma vez que eles não querem as coisas para si. Querem é conduzir tudo para o coletivo, para a distribuição geral e não interesseira.

O Sol nasce e brilha para todos. Por isso a comparação com o bem em si, dadivoso e comunitário. Pelo menos tem sido assim até agora, se bem que se corre o risco de alguém ainda pretender privatizar a sua energia, como já fizeram com a elétrica, com a água, com o verde de tantos parques e até andam tentando fazer com nossas praias. Platão, em toda a sua obra, destacava a ideia do BEM, sendo essa percepção verdadeira quando abarca o plural, ilumina o todo. Entendermos a essência disso é de fato primordial. Quando sabemos para onde as coisas devem ir é que podemos ajudá-las no seu caminhar na direção certa. E esse deve ser o verdadeiro destino e razão de ser da humanidade.

23.10.2024

Você gosta de política, comportamento, música, esporte, cultura, literatura, cinema e outros temas importantes do momento? Se identifica com os meus textos? Se você acha que há conteúdo inspirador naquilo que escrevo, considere apoiar o que eu faço. Contribua por meio do PIX virtualidades.blog@gmail.com ou fazendo uso do formulário abaixo:

Uma vez
Mensal
Anualmente

FORMULÁRIO PARA DOAÇÕES

Selecione sua opção, com a periodicidade (acima) e algum dos quatro botões de valores (abaixo). Depois, confirme no botão inferior, que assumirá a cor verde.

Faça uma doação mensal

Faça uma doação anual

Escolha um valor

R$10,00
R$20,00
R$30,00
R$15,00
R$20,00
R$25,00
R$150,00
R$200,00
R$250,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente

O bônus de hoje é o áudio de Gente Humilde, na voz de Taiguara. Essa música é de Aníbal Augusto Sardinha, um excepcional compositor e violonista brasileiro, tendo recebido letra póstuma de Vinícius de Moraes e Chico Buarque de Holanda.

Taiguara – Gente Humilde


Descubra mais sobre VIRTUALIDADES

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

2 Comentários

  1.  “Platão, em toda a sua obra, destacava a ideia do BEM, sendo essa percepção verdadeira quando abarca o plural, ilumina o todo” 👏🏽
    “Assim em cada lago a lua toda brilha porque alta vive.”

    ******************************

    Para ser grande, sê inteiro: nada
    Teu exagera ou exclui.
    Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
    No mínimo que fazes.
    Assim em cada lago a lua toda
    Brilha, porque alta vive.

    Fernando Pessoa  , Odes de Ricardo Reis. Lisboa: Ática. 1946 (imp.1994). P. 148.

    Curtir

Deixe um comentário