FUTEBOL À ESQUERDA (1)

Durante a ditadura militar, devido ao uso feito do futebol como mais um dos vários elementos de distração do povo – o estilo pão e circo –, o que faziam também com o financiamento das pornochanchadas, um outro exemplo, os militantes da esquerda passaram a nutrir certo ranço contra esse esporte. Algo como a recente aversão à camiseta da Seleção Brasileira, que foi apropriada pela extrema-direita, deixando de ser um símbolo de toda a Nação. A frase mais do que verdadeira naquela época, mesmo sendo uma profunda ironia, era “onde a Arena vai mal, time no Nacional”. O campeonato chegou a contar com 94 clubes, no ano de maior inchaço. Além disso, a então CBD – Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF), era dirigida por um militar que caiu na sede de paraquedas, biônico e odiado. Em função disso e sem dialogar com a passagem do tempo e todas as alterações econômicas e nos costumes, boa parte desta desconfiança ainda permanece. Mas, ela está longe de ser inteiramente justa.

Primeiro, sabemos que não foi apenas aqui que o futebol serviu a muitos propósitos pouco louváveis. A Argentina fez o mesmo, com a conquista da Copa do Mundo disputada no vizinho país, em 1978, atendendo e muito aos propósitos do ditador Jorge Rafael Videla, general que ficou no poder entre os anos de 1976 e 1981. Na Espanha, o generalíssimo Francisco Franco fez do Real Madrid uma potência, contribuindo para a construção do estádio Santiago Bernabéu; para a contratação do maior jogador disponível na época, o argentino Di Stéfano; e exigindo da federação arbitragens que eram sempre amplamente favoráveis ao clube, quando este estava enfrentando dificuldades técnicas em campo.

Voltando à Copa de 1978, um fato pouco conhecido é que Johan Cruyff, um grande craque holandês que fora vice-campeão em 1974, perdendo a final contra a Alemanha, se recusou a vir atuar na Argentina. Disse que não iria fazer parte de evento que promoveria uma ditadura sanguinária. O mesmo Cruyff, quatro anos antes, não usou camisa da Adidas porque entendia ser absurdo os atletas fazerem propaganda de graça – até então não havia a competição entre os fabricantes –, tendo sido o único atleta a usar um modelo diferente, também na cor laranja, obviamente, mas com apenas duas listras e sem a logomarca da empresa. A Holanda terminou outra vez vice, sendo derrotada em ambas as oportunidades pelos anfitriões.

Quanto ao futebol ser usado como propaganda direitista, nem sempre se teve a aceitação disso por parte dos torcedores. Aliás, são muitos os clubes ligados direta ou indiretamente à resistência, apoiando tendências esquerdistas e notadamente populares. Um bom exemplo é o Vasco da Gama (RJ), que têm histórico de luta contra o racismo e outras formas de discriminação, praticamente desde quando foi fundado. Vascaínos foram os primeiros a alcançar um título estadual contando no seu elenco com atletas afrodescendentes, pobres e operários. Isso porque desde a sua fundação, jamais discriminou o ingresso de quem quer que fosse. Com brancos sendo exclusividade nos seus grupos, Fluminense, Flamengo e Botafogo se afastaram da liga local naquele ano, por não aceitarem a presença do Vasco, fundando outra. O documento no qual o clube trata de reafirmar sua posição é um manifesto exemplar contra o racismo.

Em termos esportivos, o Bahia (BA) foi o primeiro clube campeão em uma disputa nacional em nosso país, vencendo o Santos na final da Taça Brasil de 1959. Com isso, conquistou o direito de ser também o primeiro representante brasileiro na Libertadores da América, em 1960. Fora das “quatro linhas” – não sei porque, mas isso me lembra alguma coisa –, o Bahia sempre foi um campeão de ações afirmativas. Ao longo da sua história, defendeu discriminados, combateu a intolerância religiosa, se colocou contra o genocídio da juventude negra, manteve campanha permanente pela presença de mulheres nos estádios e se posicionou contra o fascismo. Recentemente o clube se manifestou em prol da demarcação de terras indígenas e homenageou heróis, heroínas e ativistas, como Zumbi, Dandara, Moa e Marielle.

O Corinthians (SP) teve o movimento Democracia Corintiana, liderado por jogadores como Casagrande e Sócrates, atuante em plena ditadura militar, o que não era nada fácil. Sua torcida organizada mostrou força também no ano passado, quando desmobilizou dois bloqueios que os bolsonaristas haviam feito em estradas paulistas, coisa que a Polícia Rodoviária Federal não teve competência nem vontade de fazer. E os vascaínos também desfizeram outro. O Grêmio (RS) foi o primeiro clube do Brasil a ter uma torcida organizada formada exclusivamente por homossexuais, isso na década de 1970, cerca de 50 anos atrás, portanto.

E temos até algumas histórias bem curiosas, como a adoção de uma camiseta de goleiro, pelo Madureira (RJ), em 2013. Nela havia a estampa do rosto de Che Guevara. O motivo foi a comemoração dos 50 anos da primeira excursão de clube estrangeiro à Cuba, depois da derrubada do ditador Fungencio Batista. Fora da equipe carioca essa primazia. O político e guerrilheiro homenageado era argentino, nascido em Rosario – torcia para o Club Atlético Rosario Central –, e jogava como “portero”. O sucesso de marketing foi tão grande que ela seguiu sendo usada por muito tempo. Não se pode esquecer que aquele é um bairro operário, que tem o apelido de “Capital do Subúrbio”, onde ficam também as escolas de samba Portela e Império Serrano.

Em uma outra crônica listarei alguns dos clubes europeus que têm histórias ligadas ao combate do fascismo e à luta em defesa da democracia, das causas sociais e dos direitos das minorias. No Velho Continente isso é muito mais evidente e relevante do que aqui, e existem relatos bem interessantes.

05.07.2023

Corinthians entrando em campo com faixa sobre a democracia, em plena ditadura militar

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O bônus de hoje é a música Meio de Campo, de Gilberto Gil. Ela é uma homenagem a Afonsinho, um jogador de enorme técnica, que brilhou especialmente no Botafogo, mas também com outras camisas no Rio de Janeiro, como do Vasco da Gama e do Olaria. Ganhou notoriedade pelas suas ideias e posições políticas. Estudava medicina em paralelo e participava do movimento estudantil. Não aceitava a existência do passe e foi o primeiro a obter na justiça sua “liberdade”, depois que o time da Estrela Solitária o afastou por algum tempo, com a desculpa de ser por ele usar barba e cabelo grandes. Isso rendeu inclusive o filme Passe Livre, dirigido por Oswaldo Caldeira.