O HOMEM QUE DOCUMENTOU A PRÓPRIA MORTE
Setembro de 1957. O Zoológico Lincoln Park levou uma cobra até o Museu de História Natural de Chicago, para que ela fosse identificada. O encarregado deste trabalho foi Karl Patterson Schmidt, cientista que era conhecido e respeitado no campo da herpetologia (*), nome dado ao ramo que estuda anfíbios e répteis. Existia dúvida sobre ser ela ou não uma Boomslang, que é extremamente venenosa e ocorre na região da África Subsaariana. Uma das razões da incerteza decorria do fato desta não ter a placa anal dividida, uma característica não compatível com a espécie.
Ao pegar o animal que lhe foi alcançado pelo colega Robert Frederick Inger, sem a precaução que seria necessária, Schmidt foi picado. “Ela me mordeu imediatamente na superfície lateral carnuda da primeira falange do meu polegar esquerdo”, escreveu ele em seu diário. “A boca estava bem aberta e a mordida foi feita apenas com as presas traseiras. Somente a presa direita penetrou em todo o seu comprimento, de cerca de uns três milímetros”, complementou. Essa deve ter sido se não a mais detalhada, ao menos uma das descrições mais serenas e cuidadosas feitas por uma pessoa nessas circunstâncias. Ele não agia como vítima, mas como o estudioso que se orgulhava de ser.
Mais surpreendente ainda é que ele seguiu agindo de modo igual, a partir daquele momento, registrando tudo o que sentia em decorrência do ataque sofrido. Com absoluta certeza, em 24 horas estaria morto. Mesmo assim, cumpriu seu expediente e rumou para a sua casa. “17h30: Tenho náuseas intensas, mas sem vômito. Estou no trem suburbano. 18h30: Estou com calafrios, tremores e febre de 38 graus. Há sangramento nas gengivas. 20h30: Comi duas torradas com leite. Meia-noite: dormi bem desde às 21 horas. Agora urinei e saiu muito sangue. 4h30: Voltei a acordar. Bebi água, o que foi seguido por náuseas e vômitos intensos. Me senti melhor e voltei a dormir. 6h30: Acordei, agora em definitivo.”
Ao longo da manhã ele continuou com a macabra rotina de anotar os detalhes dos sintomas que sentia, explicando os efeitos do veneno em seu organismo. O que, no entanto, não fez por muito tempo mais. “26 de dezembro, 7 horas: Tomei cereal, ovos pochê com torradas, purê de maçã e café. Notei sangramento contínuo pela boca e pelo nariz, mas não excessivamente.” Foram suas últimas palavras no papel. Pouco depois vomitou, ligou para a esposa e perdeu a consciência. Foram feitas tentativas de ressuscitação pela equipe médica que o atendeu, mas sem sucesso. Morreu devido à paralisia respiratória.
O veneno das cobras Boomslang é terrivelmente potente. Basta que seja injetado 0,0006 miligramas em um pássaro e ele morre em minutos. Ele causa hemorragia interna, resultando em morte lenta e agonizante. No caso de Schimdt, a autópsia revelou sangramentos nos pulmões, olhos, coração, rins e cérebro. Mas, por que razão ele não teria buscado ajuda médica logo após o acidente de trabalho? O jornal Chicago Daily Tribune assegurou, na matéria publicada, que ele chegou a ser aconselhado a fazer isso, tendo se recusado. Isso levou muita gente a dizer que não se tratou de uma tragédia, mas de um caso onde a curiosidade científica teria superado a cautela.
Não foi nada disso. Ele sabia muito bem que o antídoto para tal veneno só estava disponível na África. Não haveria chance alguma dele chegar antes da morte. Assim, teria simplesmente decidido aceitar o próprio destino. E continuou fazendo o mesmo trabalho que lhe motivara por toda a vida. Ele escrevera mais de 200 artigos e livros, entre eles o best-seller Living Reptiles of the World (Répteis Vivos do Mundo), além de doar 15 mil títulos, que se tornaram base para uma biblioteca sobre o tema. Não poderia ir contra sua própria biografia: escolheu se retirar com altivez e dignidade.
20.08.2025
(*) O termo herpetologia deriva do grego herpeton, que significa “aquilo que rasteja”. Esta ciência abrange não apenas a classificação como também ecologia, comportamento, fisiologia e paleontologia dos anfíbios e dos répteis.

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