O VALOR DE SER UM HEREGE

Eu havia cursado dois anos de Engenharia Civil, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, após uma ótima colocação no vestibular. Porém, com certeza não estava feliz porque não me identificava com o curso como supunha antes de ingressar. Ficava escrevendo pequenas histórias nos cadernos, durante as aulas de cálculo, por exemplo. Assim, para evitar um desastre maior e talvez futuras quedas de edificações que viesse a projetar, contei isso para o meu irmão mais velho. Ele ocupava o papel de pai para mim, depois do falecimento do nosso. Então, com o apoio dele, inclusive financeiro, fui “procurar minha turma” no Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica.

Antes das aulas começarem ainda me aventurei numa viagem até o Rio de Janeiro, para onde fui pedindo caronas aleatórias na estrada. Por lá existiria o acolhimento generoso de integrantes da família Dourado, que eu conhecia de Porto Alegre mesmo e que também estariam na capital carioca, em casa de uma meia-irmã europeia. Foram dias maravilhosos, inesquecíveis mesmo, de tal forma que na hora de voltar para a “estreia” na PUC, me atrasei pelo menos uns três deles. Conheci os novos colegas, os professores e um clima que era muito diferente do anterior. Estávamos em março e a páscoa daquele ano seria relativamente cedo. Então, um padre que nos dava aula de religião – a frequência nem era obrigatória e mesmo assim resolvi acompanhar –, disciplina que compreendo ser aceitável no currículo inicial de uma instituição católica, me achou lá no meio do anfiteatro, repleto de alunos de vários cursos.

Era o primeiro encontro dele com a turma e ele começou a falar sobre este evento que se aproximava. Abordou a ressurreição de Cristo e disse que infelizmente existiam “seitas” que acreditavam na reencarnação, que seria algo absurdo. Daí, assim do nada, estalou os dedos e apontou para mim, perdido no meio de mais de 80 outros candidatos: “você aí, por exemplo, acredita na reencarnação?”. Todos se viraram na minha direção e eu confesso que hesitei. Mas, felizmente, criei coragem para responder com a minha verdade. “Sim senhor, eu acredito”. Ele pareceu perplexo e fez outra pergunta: “então você não é cristão?”. O caldo já estava mesmo entornado e eu prossegui. “Sim, eu sou cristão e acredito na reencarnação”.

O padre era idoso. Jamais pretendi faltar com o respeito com ele, nem como religioso, professor ou pessoa. Mas, eu não seria um Pedro a negar senão Cristo as minhas próprias convicções espíritas. Ele então ficou um breve tempo em silêncio, enquanto seu rosto ganhava tons de vermelho. E, colérico, declarou em alto e bom som para toda a turma ouvir: “o senhor é um herege!”. Eclodiu uma revolta quase que geral. Estudantes dos quais obviamente eu sequer tinha tido tempo para aprender os nomes se posicionaram me defendendo. E o padre saiu da sala. Também não voltou na semana seguinte, sendo substituído por outro que nem tocou no assunto.

A consequência é que muitos colegas vieram me perguntar sobre o que era afinal o espiritismo. Não devo dizer que o tiro saiu pela culatra por ser isso muito impróprio, considerando que verdadeiros cristãos não faziam desde aquela época arminhas com as mãos. Entretanto, é inegável que com sua atitude ele fez “propaganda” favorável para uma religião que não era a que professava. Também é importante salientar que este padre não representou a conduta de outros com os quais convivi, que jamais questionaram o fato de não católicos estarem nas salas de aula. Lembro, por exemplo e com especial carinho, do irmão Mainar Longhi e das suas aulas de português, nas quais buscava transmitir seu imenso conhecimento com uma dedicação irrepreensível.

O termo herege tem origem na palavra grega hairetikós. Seu significado é algo próximo de “escolha”. Era usada para designar o homem que decidia seguir suas próprias opiniões, que se permitia adotar e sustentar posições contrárias ao senso comum. Na Grécia antiga ele também era um modo de descrever diferentes escolas do pensamento filosófico. Foi com o advento do cristianismo que aos poucos adquiriu uma conotação negativa, uma vez que simbolizava o que é desafiador. Isso rendeu condenações à fogueira para muita gente, felizmente sem conseguir silenciar o livre pensar. Herege, portanto, é todo aquele que não se contenta em seguir cegamente preceitos doutrinários, que só os aceita quando filtrados pela coerência, pela lógica, por valores humanitários e pela ciência. Kardec foi um dos grandes, portanto. Resta torcer para que os atuais seguidores da sua doutrina sempre adotem essa postura.

29.07.2024

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O bônus de hoje é o áudio da música Diversidade, de Lenine. A letra merece uma atenção especialíssima.