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SAUDADES DE UMA GUERRA MENOS SUJA

Alguns anos atrás cursei, na Universidade de Santa Cruz do Sul, uma pós-graduação em Comunicação e Política. Tive excelentes professores e a sorte daquela ter sido uma turma acima da média. Havia diversidade nas formações, interesses e projetos, além de uma união muito grande no grupo, o que resultou em respeito geral e diversas amizades que ainda permanecem. Uma das características existentes já naquela época era a polarização, que então ocorria entre simpatizantes do PSDB e do PT, essencialmente. Até porque essas duas legendas eram antagonistas e protagonistas na política brasileira, ao contrário do que se verifica agora.

Considerados os resultados das eleições municipais de 2024, isso mudou radicalmente. Mesmo elas não estando totalmente concluídas, uma vez que todas as cidades com mais de 200 mil eleitores, nas quais não tenha existido um candidato com mais de 50% dos votos, haverá um segundo turno no próximo domingo, PSDB e PT viraram coadjuvantes. O Partido dos Trabalhadores já vinha com desempenhos irregulares desde 2016, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira despencou agora, inapelavelmente. Ambos viram votos migrando da esquerda para o centro e da direita para a extrema-direita.

No número total de votos para prefeito, a liderança no pleito recente ficou com o PSD – Partido Social Democrático, que recebeu 9,3 milhões. O MDB – Movimento Democrático Brasileiro, ficou em segundo com 7 milhões. Os tucanos receberam 2.297.935, exatos 66.053 a mais do que os petistas, com 2.231.882. Mas, comparados apenas estes dois rivais mais antigos, o PT teve uma pequena recuperação, ao emplacar 248 prefeitos, 64 a mais do que os 184 de quatro anos antes. Em números absolutos o PSDB fez mais, com 269. Só que isso representou um encolhimento de 48% em relação à 2020, quando conseguira 525.

Não bastasse isso, suas vitórias foram menos expressivas. O PT pela segunda eleição consecutiva não elegeu prefeito em capitais, no primeiro turno. E nas quatro onde disputa o segundo esteve atrás na contagem: Natália Bonavides em Natal (RN), Evandro Leitão em Fortaleza (CE), Maria do Rosário em Porto Alegre (RS) e Lúdio Cabral em Cuiabá (MT) vão para o segundo precisando reverter expectativas. Em São Paulo, a maior e mais importante cidade brasileira, apoia Guilherme Boulos (PSOL), também estando atrás nas intenções de voto. O PSDB conseguiu a proeza de pela primeira vez em toda a sua história não vencer em nenhuma, com os sete postulantes que lançou não tendo chegado sequer ao segundo turno. E perdeu as quatro prefeituras que alcançara em 2020.

Os partidos conservadores se deram muito melhor. O PSD fez 878 prefeitos, o MDB 848, o Partido Progressista (PP) 743 e o União Brasil (UB) 578. Em quinto tivemos a extrema-direita, com o Partido Liberal (PL) e suas 510. Na classificação final o PSDB ficou em oitavo e o PT em nono. Pior é que a soma das vitórias de ambos (517) praticamente empatou com o extremista e arquirrival da democracia, o PL bolsonarista. Para se ter um simples comparativo, o PSDB foi recordista em conquistas no ano 2000, quando venceu em 990 municípios. Já o auge petista foi alcançado em 2012, com 620, sendo sete capitais.

Evidente que muitos eleitos terminam migrando para outras siglas durante seus mandatos, o que é uma verdadeira praga na nossa política. No caso dos prefeitos eleitos pelo PSDB em capitais, no pleito de 2020, apenas Cínthia Ribeiro, em Palmas (TO) , se manteve fiel. Mesmo assim, não conseguiu fazer sucessor. Outros dois abandonaram o ninho tucano: Álvaro Dias, em Natal, que foi para o Republicanos; e Hilton Chaves, em Porto Velho (RO), que mudou para o União Brasil. Em São Paulo, Bruno Covas faleceu em 2021, tendo assumido seu vice emedebista Ricardo Nunes, que sempre flertou com a extrema-direita bolsonarista, que se tornou sua fiadora. Ainda sobre a capital paulista, seu candidato a prefeito em 2024, José Luiz Datena, ficou com míseros 1,84% dos votos. Para piorar, nenhum vereador foi eleito, justo na cidade que viu nascer a sigla e sempre foi seu porto mais seguro. Por isso brilham os olhos de Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, que sonha ser abençoado como um novo nome, herdeiro a iniciar nova dinastia e candidato à presidência em 2026.

A verdade é que toda a estrutura lógica sobre a qual se debruçou o sistema partidário, entre 1994 e 2012, implodiu em 2018. Isso porque a máquina brutal montada pelos fascistas entrou em operação aproveitando uma outra campanha anterior, que tinha interesses claros, mas errou na dose: a antipolítica. Seu objetivo inicial era desacreditar a política dita tradicional, como uma ação que visava desestabilizar as esquerdas, que cresceram mais do que o desejado pelas elites. Isso terminou sendo a base a partir da qual o domínio das redes sociais, a distribuição absurda de fake news, a utilização de organizações milicianas e de igrejas pentecostais foram fatores que permitiram aflorar o que de pior tinha a sociedade, levando Jair Bolsonaro à presidência.

Com o PT aturdido e o PSDB em crise de identidade, ficou bem esburacada a estrada por onde os dois partidos transitavam. Os tucanos já vinham com problemas desde que nomes como Franco Montoro, Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso foram perdendo importância, com a nova geração abandonando a socialdemocracia e se aproximando de valores conservadores. O que se agravou com a ascensão de João Doria. O Partido dos Trabalhadores se desgastava com desencontros de sua direção, a credibilidade abalada pelo Mensalão e a orquestração televisiva que incensava a Lava-Jato. E aquilo que pareceu na época os tiros de misericórdia, mesmo sem ter se confirmado depois, foram o golpe contra a Dilma e a posterior prisão imotivada de Lula.

Foi assim que, por incrível que pareça, se passou a ter saudade dos tempos em que a disputa se dava entre as duas correntes defendidas pelos alunos no curso da UNISC. Os mais à esquerda não aceitando, por exemplo, a sanha privatista dos tucanos, que por sua vez criticavam o tamanho e a participação do Estado nas questões sociais, defendida pelos petistas. Depois veio essa fase recente, na qual o nível dos temas e discussões baixou de tal forma que era impossível imaginar antes. Aquela “guerra” não era suja como a que se estabeleceu posteriormente, porque tinha caráter ideológico e nada de negacionismo científico, armamento da população, misoginia, racismo, desinformação generalizada, fanatismo e exaltação à violência. Nunca antes na história deste país se tinha visto tanto “passar da boiada”, destruição de políticas públicas, ataque à educação e às artes, à saúde pública, liberação de agrotóxicos proibidos no exterior e massacre de populações originárias. Para culminar, a inoperância proposital durante a pandemia levou a mais de 700 mil mortes. Tudo sob um suposto beneplácito de Jesus, que começou a frequentar goiabeiras.

Pior é que o futuro não parece promissor para esses dois partidos. O PSDB corre um sério risco de definhar de tal modo que será irreversível, caso em 2026 não atinja a cláusula de barreira, que será de 2,5%. Isso ocorrendo, ficará sem fundo partidário e verá uma debandada final das últimas aves do seu ninho. E o PT, que tem tido dificuldades em formar novas lideranças, poderá encolher e muito depois que Lula deixar a política. O que, pela lógica imposta por sua idade, não deve demorar a acontecer. Ou alguém duvida que ele no máximo consiga ainda disputar um pleito, mesmo assim pagando um alto preço pessoal, devido à inexorável passagem do tempo?

24.10.2024

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O bônus de hoje é Noite Inteira, de Pitty e com participação especial de Lazzo Matumbi, que é um dos expoentes da música negra da Bahia, sendo oriundo do bloco afro Ilê Aiyê. A música repete um dos mantras surgidos com as eleições presidenciais de 2018: “Respeite a existência ou espere resistência”. Lembrando que Pitty foi voz ativa contra o atraso.