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A ENCHENTE DE 2024, PASSADO UM ANO

Morei alguns anos em uma das várias cidades do interior do Rio Grande do Sul que foram duramente atingidas pela enchente de maio de 2024. Eu era editor-chefe de um jornal diário que ocupava, digamos assim, a segunda posição em termos de importância na comunicação social da região. Isso porque, inegavelmente, na época a emissora de rádio tinha maior penetração e apelo mais popular. E todos os demais meios eram menores do que esses dois. A direção da rádio adotara um sistema de venda de espaços, de tal forma que muitos dos seus horários eram preenchidos de forma terceirizada, com os programas tendo “donos” que produziam e comercializavam, remunerando a empresa com valores fixos ou variáveis, conforme os contratos. Um desses apresentadores se destacava, com notícias e opiniões associadas. Vendia a imagem de alguém muito preocupado com os ouvintes, mas paralelamente era porta-voz de determinada fatia do empresariado local e seus interesses.

As enchentes sempre foram frequentes naquela região. Antigamente elas se repetiam a cada cinco anos. Todo mundo sabia disso e se estabelecia, por incrível que possa parecer, um convívio relativamente pacífico entre os moradores e a natureza. Até porque, como acontece em quase todos os lugares, mais atingido sempre era o povo da periferia, aquele menos visível na sociedade local. Depois, as cheias passaram a ser de três em três anos e se tornaram anuais. Nos últimos tempos nos quais eu estava por lá, chegamos a ter mais de uma em um único ano. E, pior de tudo, a área de abrangência, de penetração das águas que extrapolavam o leito do rio, ia crescendo.

Em cada enchente que ocorria o tal programa de rádio da figura citada assumia importante papel na informação das pessoas. Era fundamental alertar sobre o nível das águas, sobre o deslocamento dos desabrigados, sobre as providências – sempre paliativas – das autoridades. E crescia ele próprio em relevância. Quanto mais durava o problema, maior era o tempo em que ficava ocupando lugar quase central nas relações de toda a comunidade. Até que um dia ocorreu um grande deslize, praticado ao vivo no microfone. A partir de dados repassados por um dos repórteres que gravitavam ao seu redor, declara ele de forma surpreendente: – As águas estão baixando assustadoramente!

A história é cômica, mesmo que vivida em plena calamidade. Nem sei se as pessoas por lá são as mesmas, o jornal onde eu trabalhava fechou e a emissora certamente enfrenta hoje concorrência pesada das redes sociais e da facilidade de penetração de outras, que chegam não mais apenas pelas ondas de rádio como também pela internet. Enfim, o tempo passou, implacável como sempre. E a natureza, essa também parece ter cansado de dar sinais aos poucos e resolveu ser mais incisiva.

Nos primeiros dias de maio de 2024 a chuva que caiu sobre todo o Rio Grande do Sul parecia vir não dos céus, mas de alguma outra fonte de fato inesgotável. Começara um pouco antes, em 29 de abril. Mas, em 3 de maio, a intensidade alcançou índice recorde. Em Porto Alegre o calmo Guaíba – que já foi chamado de rio e hoje consideram lago – resolveu visitar sem cerimônia alguma o Centro Histórico, tomando conta da Casa de Cultura Mário Quintana, do Museu de Arte, do Mercado Público, da Praça da Alfândega e inúmeros prédios simbólicos existentes ao redor. E fez muito mais: interrompeu o funcionamento do Trensurb e da Estação Rodoviária, partindo depois para áreas da cidade que ele não via desde a enchente de 1941, até então a maior da história – foi superada agora. Fechou o aeroporto Salgado Filho e estradas de acesso, isolou a população (que também ficou sem água, energia elétrica e internet), acumulou lixo nas ruas, causou desabastecimento de alimentos e remédios, precarizou tudo.

As ilhas ficaram embaixo d’água, a Zona Norte começou a ter empresas submersas junto com as casas de moradores que tiveram que subir nos telhados para aguardar socorro. Foram 35 dias de chuva que destruíram estruturas em Canoas e Eldorado do Sul, nos vales do Sinos, Taquari e Rio Pardo, indo além deles. Em todo o Estado, 478 municípios acabaram atingidos. Tivemos quedas de pontes, deslizamentos de terra e cerca de 2,4 milhões de pessoas sofrendo com perdas materiais e deslocamentos. Diretamente, 183 pessoas morreram afogadas e soterradas – não temos números confiáveis que apontem as mortes posteriores, decorrentes de ferimentos e doenças. E os prejuízos econômicos chegaram à casa dos bilhões de reais.

A maior tragédia climática da nossa história foi consequência de chuvas torrenciais. Chegaram a mais de 1000 mm no acumulado, em algumas regiões, com a intensidade da precipitação alcançando em determinados locais 190 mm em um único dia. A capital gaúcha registrou o mês mais chuvoso de todos os tempos, com 450 mm, o que superou em muito a sua média histórica. Entretanto, as consequências teriam sido bem menos catastróficas se houvesse cuidado prévio, providências como a simples manutenção do sistema de contenção que existe e estava há muito negligenciado.

Com o Estado debaixo d’água, o Governo Federal destinou R$ 81,4 bilhões para custear ações emergenciais, como salvamentos, resgates, limpeza e recursos para a recuperação de toda a infraestrutura, além de apoio para a população, empresas e cooperativas. Também tratou de suspender a cobrança da dívida do Rio Grande do Sul para com a União, por 36 meses, além de perdoar a cobrança de juros decorrentes desta decisão. Isso gerou uma economia avaliada em R$ 11 bilhões, de tal forma que tudo o que o Governo do Estado tem aplicado na reconstrução vem, na verdade, também do auxílio providencial dado por Brasília. Do montante inicial, R$ 6,5 bilhões continuam depositados, aguardando que sejam apresentados projetos, o que ainda não foi feito pelos responsáveis aqui do Palácio Piratini, mesmo tendo passado um ano.

Ao povo gaúcho resta seguir cobrando por comprometimento das suas autoridades locais, por uma celeridade ainda não verificada em relação a providências não apenas de reconstrução como também preventivas. Por cuidados ambientais. Pela ampliação e manutenção de todas as estruturas de contenção já existentes. Quem sabe com isso as águas não subam tanto, ou venham a baixar assustadoramente se e quando subirem.

03.05.2025

Homem é resgatado por equipe em helicóptero, durante a enchente de 2024. Foto de Renan Mattos

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03.05.2025

O bônus de hoje é a música Um Pingo no Telhado, apresentada pelos músicos Márcio Faraco, Renato Borghetti, Yamandu Costa e Ernesto Fagundes. O nome da canção faz referência ao cavalo Caramelo, de oito anos de idade e raça indefinida – no Rio Grande do Sul o termo “pingo” é sinônimo de cavalo –, que ficou imóvel sobre um telhado de zinco de uma casa em Canoas, por mais de quatro dias, antes de ser resgatado por voluntários do Corpo de Bombeiros de São Paulo. Ele se tornou símbolo da resistência gaúcha.