O ASPECTO E O GABARITO

Meu irmão, Sérgio da Cunha Saldanha, foi promotor público em Rosário do Sul e em outras cidades gaúchas. Naquela, ele morou em uma casa que ficava na beira da praia do Rio Santa Maria. Ao lado dela tinha outra onde se encontrava sempre um funcionário, não lembro se caseiro ou se apenas comparecia regularmente sem residir no local. Como o Sérgio sempre foi de conversar e fazer amizade com todo mundo, aconteceu o mesmo desta feita. E o homem começou também a prestar alguns serviços do outro lado da cerca divisória. Aí entra o que lembro dele e como isso me marcou. Fosse para cortar a grama ou fazer qualquer reparo, ele sempre perguntava se meu irmão queria algo gabarito ou apenas dar um aspecto.

Gabarito, obviamente, era fazer buscando o máximo de qualidade, algo próximo da perfeição. Este substantivo masculino refere também um modelo, um modo que se tem para verificar algo. Como os gabaritos das provas, dos exames. Eles nos mostram o caminho dos acertos, servem de checagem. Mas, gabarito ainda remete à hierarquia, à categorização. Logo, um gabarito alto refere algo positivo, melhor do que a média. Pode ser sinônimo de capricho e de cuidado.

Aspecto era um retoque na aparência. Por definição, essa é uma visão exterior, algo que nem sempre encontra paralelo com a realidade interna. A comida pode ter um bom aspecto sem que ele seja acompanhado por sabor ou os nutrientes apropriados. Não que isso seja corriqueiro, mas pode apontar algo enganador. O “comprar gato por lebre”. O carro bem lavado e com disfarces nas imperfeições, na hora em que o proprietário quer vender. Pode ser apenas algo circunstancial ou mesmo um ardil, embuste ou fraude.

A vida é uma sucessão de escolhas que temos que fazer entre o gabarito e o aspecto. Entre aprender de fato ou apenas alcançar a nota para que venha a aprovação. Entre o se dedicar verdadeiramente à profissão ou apenas ter nela um modo de subsistência. E, por incrível que pareça, num primeiro momento, isso pode ser visto inclusive nas nossas relações interpessoais. Porque existem amizades verdadeiras e aquelas aproximações por interesse; amores sinceros e relações convenientes. Visto mais profundamente, o próprio ser humano é uma dualidade entre a essência e a aparência, corpo e alma, bem e mal.

O aspecto, neste mundo contemporâneo e consumista, não raras vezes vende mais e melhor do que o gabarito. Talvez porque estejamos nos acostumando além da conta com a grife, o status. Fatores de ordem sociocultural, muitas vezes necessidades criadas pela publicidade, não podem mais ser desconsiderados. Não há mais aquele “vale quanto pesa”, de antigamente. Assume o “vale quanto nos fazem acreditar que pesa”, a popularidade da marca, aquilo que é agregado e não necessariamente utilitário.

E aqui, cabe ainda um parêntesis: essa expressão original citada acima surgiu na Idade Média, quando as corporações de ofício exigiam que os preços fossem estabelecidos através da soma específica e exata do custo da mão de obra empregada com o valor da matéria-prima utilizada. Lucro e usura – cobrança de juros – tinham condenação igual, antes da industrialização e do capitalismo. Essa teoria é até aceitável.

Outra explicação, da mesma época, teria origem no costume nórdico de cobrar uma indenização de quem cometia assassinato, para a família do morto. E ela era proporcional ao peso do falecido. Aqui no Brasil, ainda na vergonhosa época da escravidão, o valor de um negro era em geral estipulado considerando sua capacidade física, sendo essa avaliada em função da idade e da força (massa muscular), dando nova interpretação ao dito, essa bem menos palatável.

De qualquer sorte, eu nunca esqueci dessa pergunta que era feita ao meu irmão. Vez por outra ela me vem à mente, quando estou diante da necessidade de realizar algo que me pedem. Serve como policiamento, um alerta para que a melhor decisão seja tomada. O que não significa que eu sempre opte pela melhor alternativa.

03.09.2024

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