TIROS NOS PRÓPRIOS PÉS

Eu optei por não escrever nada aqui, no calor do momento. Naqueles dias não faltaram textos opinativos e achei que seria melhor esperar a poeira baixar, não ser apenas mais um, refletir um tanto mais sobre o que colocar – e nem é mais no papel, como se dizia, mas na tela do computador mesmo. Sem dúvida, o país inteiro estava aguardando com ansiedade que começassem os julgamentos dos responsáveis pelos atos golpistas de 8 de janeiro. Mesmo sabendo que isso iria iniciar com as arraias-miúdas, os que se arriscaram sendo “bucha de canhão”. Aqueles que foram doutrinados com fake news, disparadas por operadores de redes de ódio; os que agiram em Brasília incentivados por pastores, que usaram as estruturas de suas igrejas para os arregimentar; que para lá se deslocaram, patrocinados por empresários; e que foram acolhidos por militares, junto aos quartéis.

Quando não deu certo o plano urdido, que era conseguir que o governo eleito decretasse uma esperada GLO, iniciais de Garantia da Lei e da Ordem, dando plenos poderes para que as Forças Armadas viessem enfrentar o caos instaurado, ruiu o castelo de cartas. O Governo Lula foi muito mais inteligente do que eles esperavam. Seus ministros e assessores foram eficientes no sentido de encontrar de imediato outras saídas e, com isso, o que estes baderneiros conseguiram foi acumular uma série de provas inequívocas contra eles próprios. Tiros desferidos contra os próprios pés. Cada vídeo se vangloriando, cada mensagem de WhatsApp trocada com dicas do que fazer no local ou relato do que estavam fazendo, tudo contribuiu para derrubar previamente todas as desculpas furadas que tentaram inventar depois.

“Eu estava passando pela Praça dos Três Poderes na hora, apenas isso”. “Só entrei no Palácio do Planalto para tirar outras pessoas de lá”. “Eu sentei na cadeira do ministro, sim. Mas apenas porque encontrei ela do lado de fora do prédio”. “Peguei algumas coisinhas, mas imaginava que era permitido, como souvenir” (centenas de itens de decoração e até computadores foram levados). “Juro que nem sabia o que estava acontecendo”. Logo após o vandalismo planejado e executado pelas hordas bolsonaristas, foram presas 2.151 pessoas. Nos dias seguintes, acabaram sendo relaxadas grande parte destas prisões.

Em 20 de janeiro 354 destas pessoas tiveram suas prisões em flagrante transformadas em preventivas, quando não há prazo para acabar. Outros 885 casos ainda eram analisados, enquanto 220 mais foram liberados mediante medidas cautelares, como uso de tornozeleiras eletrônicas. Ou seja, naquela data o total de detidos estava em 1.459. Eram gigantescas as evidências que precisavam ser examinadas, mas estas apontavam com toda a clareza para os crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, ameaça, perseguição, incitação ao crime, depredação de patrimônio público, entre outras possibilidades. Aconteceram, por exemplo, agressões contra os poucos servidores públicos que ousaram enfrentar os invasores.

A investigação continuou correndo seu curso, apesar de extremamente difícil e complexa, pelo volume e pelo ineditismo, sendo os indiciamentos apenas a consequência natural. Assim como os julgamentos que agora se iniciaram. A extrema-direita, mantendo a cartilha de abandonar quem não lhe serve mais, “esqueceu” de auxiliar seu contingente de ataque. Sem essa de recolher feridos nos campos de batalha. Então, as redes de ódio fizeram apenas um alarde inicial, jurando que havia exagero nas prisões e que a maioria dos detidos era composta por idosos e pessoas com crianças. Até mesmo certos “líderes religiosos” embarcaram nisso, reverberando a fake news. Depois, o mundo virtual foi aos poucos silenciando. Os pentecostais usam a situação apenas para que os fiéis se fanatizem ainda mais, diante da “injustiça que está sendo praticada contra os emissários do Senhor, que apenas estavam buscando evitar que o Brasil caísse nas mãos do Demônio”. Entretanto, não se sabe de nenhuma parcela do dízimo que tenha sido destinada aos detidos. Do mesmo modo, os empresários vão pagar advogados – bons e caros, certamente – apenas para eles próprios, se e quando forem alcançados pela Justiça. E os militares, que se mostraram divididos, seguem nos quartéis. Aliás, de onde nunca deveriam sair para bancar os “moderadores” que constitucionalmente não são.

Isso posto, restou ao gado aceitar o abate, torcendo apenas para que os anos de prisão fossem modestos como sua ação não foi. Os advogados que os defendem, em boa parte, são voluntários que anteviram nisso a oportunidade de uma projeção profissional, mesmo que talvez ainda não estivessem preparados para tanto. E o que se viu no Supremo Tribunal Federal foi um circo de horrores, com a atuação dos advogados virando memes. Os primeiros três julgamentos ocorreram em meados de setembro, seguindo um rito pré-determinado. No início o ministro relator, Alexandre de Moraes, leu seu relatório; depois o ministro revisor apresentou o seu comentário e ressalvas; a Procuradoria-Geral da República (PGR), autora da acusação, fez uso da palavra; relator e revisor foram os primeiros a votar; os demais votaram em ordem de sua antiguidade, de Cristiano Zanin até Gilmar Mendes; a presidente do tribunal, Rosa Weber, encerrou a votação; e tudo terminou com o resultado anunciado. Todos foram condenados.

Mais cinco réus começaram a ser julgados essa semana, agora em plenário virtual. A Polícia Federal encontrou material genético – aliás, havia sangue, urina e fezes em inúmeros locais dos três prédios – que os coloca no local dos crimes, além de portarem rojões, balas de borracha, munições de gás lacrimogêneo, uma faca e dois canivetes, com o que ingressaram na Praça dos Três Poderes para uma “manifestação pacífica”. Agora isso ocorre em plenário virtual. No domingo, 1º de outubro, já havia sido formada maioria de votos para a condenação dos cinco.

Bolsonaro se elegeu em 2018 com seu partido de então tendo o número 17. Seus seguidores depositaram – a hipótese de lavagem de dinheiro também está sendo investigada – R$ 17 milhões em PIX para “colaborar” com ele, depois que saiu da presidência. E agora o Supremo Tribunal Federal condenou a penas de até 17 anos de prisão os primeiros julgados pelos atos golpistas. Tenho nítida impressão que, pelo menos desde setembro, essa dezena foi “rebaixada” nas bancas do Jogo do Bicho.

03.10.2023

P.S.: Não se deve esquecer de outros acontecimentos, associados à invasão e que a antecederam. Citando apenas os de Brasília, tivemos a queima de três automóveis e cinco ônibus, em noite de terror; uma inacreditável tentativa de invasão da sede da Polícia Federal; e ainda a colocação de bomba no eixo traseiro de um caminhão-tanque que estava estacionado aguardando momento de descarregar combustível no aeroporto.

Se você gostou desta crônica, garanta a continuidade do blog com uma doação. Isso ajudará a cobrir custos com sua manutenção. Faça isso usando a Chave PIX virtualidades.blog@gmail.com (qualquer valor ajuda muito) ou o formulário existente abaixo. São duas alternativas distintas para que você possa optar por uma delas e decidir com quanto quer ou pode participar, não precisando ser com os valores sugeridos. Toda contribuição é bem-vinda. No caso do formulário, a confirmação se dá depois das escolhas, no botão “Faça uma Doação”.

Uma vez
Mensal
Anualmente

FORMULÁRIO PARA DOAÇÕES

Selecione sua opção, com a periodicidade (acima) e algum dos quatro botões de valores (abaixo). Depois, confirme no botão inferior, que assumirá a cor verde.

Faça uma doação mensal

Faça uma doação anual

Escolha um valor

R$10,00
R$20,00
R$30,00
R$15,00
R$20,00
R$25,00
R$150,00
R$200,00
R$250,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Agradecemos sua contribuição.

Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente
Os “patriotas” destruíram inúmeras salas e gabinetes invadidos

O bônus de hoje é uma paródia da música Teresinha, de Chico Buarque de Holanda, composta entre 1977 e 1978. Ela integrava sua peça teatral Ópera do Malandro, tendo sido posteriormente gravada por Maria Bethânia. No vídeo abaixo, toda a criatividade do músico Edu Krieger, com AdvoGADOS. Canta com ele Natália Voss.

PORTO ALEGRE NÃO MERECE ESSA DUPLA

Prometo a vocês que irei me conter e não chamarei o ex-vereador Alexandre Bobadra e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, de boçais, mesmo ambos merecendo isso. Na verdade, nem preciso fazer tal coisa, uma vez que o Brasil todo se encarregou de formar essa opinião que, infelizmente, respingou também na população da cidade. Culpa se tem em parte, na medida em que ambos receberam votos que depois permitiram que atuassem da maneira como estiveram e estão atuando.

O primeiro é formado em Direito pela Unisinos, atuando como policial penal antes de ingressar na carreira política. Foi eleito vereador pelo PL em 2020, quando recebeu 4.703 votos, o que corresponde a um percentual de 0,33% dos 1.409.351 habitantes da Capital. Desde sua posse ele protocolou nada menos do que 363 propostas, o que aparenta um trabalho bastante profícuo. Mas apenas aparenta, uma vez que nenhuma delas se tratava de alguma questão social, de melhoria da cidade e dos seus moradores. Foram, por exemplo, 220 sugestões de criação de datas comemorativas, uma das quais o transformou em alguém conhecido em todo o país, dias atrás, ao ser aceita e transformada em Lei: o Dia Municipal do Patriota, como seria chamado o 8 de janeiro.

Vejam que se todas fossem adotadas, 60,27% de todos os dias do ano seriam lembrados em efemérides por ele propostas. E o ridículo iria além de dedicar a “patriotas” a data que sempre será lembrada pela invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, como parte integrante de uma tentativa de golpe contra a democracia. Ele sugeriu também coisas como os dias municipais do Milk Shake, da Luz, do Carinho, do Conservadorismo, da Bondade e do Halawi Libanês. Foi necessário pesquisar o que seria esse último, quando descobri que se trata de um doce da culinária árabe. Já o milk shake é uma bebida espessa, doce e gelada, que quando surgiu nos EUA, em 1885, levava também whisky na sua fórmula, não sendo nada inocente. Assim como o Bobadra.

Também era grande a preocupação do ex-vereador com homenagens e manifestações de apoio ou repúdio. No primeiro bloco, garantiu distinção com a Comenda Porto do Sol para Eduardo Bolsonaro, seu colega de sigla e de ideais, e ainda com o título de Cidadão de Porto Alegre para o ex-ministro do governo anterior, Onyx Lorenzoni. Na segunda relação, se solidarizou com as autoridades e familiares das vítimas do “implacável terremoto que atingiu a região central da Turquia e o norte da Síria”. Bairros da sua cidade, onde moradores sofrem com falta de saneamento, habitação, melhor transporte coletivo e atendimento digno nas áreas de saúde e educação, não foram incluídos nas suas aflições. Essas ele reservou para si mesmo, quando foi cassado no dia 15 deste mês de agosto, por decisão do Tribunal Eleitoral do Rio Grande do Sul, devido ao comprovado abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação, durante a sua campanha.

A proposta de criação do Dia Municipal do Patriota, em Porto Alegre, foi examinada por comissões da Casa e levada para sanção do prefeito Sebastião Melo (MDB), sem a necessidade de passar pelo plenário. Isso foi ainda no mês de junho. Esse, por sua vez, se fez leitão para mamar deitado. Optou pelo silêncio quando poderia ter vetado, torcendo pela aprovação da lei com a qual obviamente concordava, mas sem que colocar o seu nome no documento da sanção, para evitar ser alvo de críticas: a chamada “aprovação tácita”. Não deu certo. Mesmo que a promulgação tenha sido feita pelo presidente da Câmara, Hamilton Sossmeier, do PTB – outro que também concordava com ela –, Melo não foi poupado de duras críticas por ninguém. Tudo virou um verdadeiro escândalo nacional, com divulgação em noticiários de todas as grandes redes de televisão. E se transformou também em chacota.

As consequências, entretanto, poderão ser muito maiores do que o debochado ex-vereador imaginava. Já chegou à CPMI que trata dos atos golpistas de 8 de janeiro documento detalhando as conexões do agora ex-parlamentar com os acampamentos que foram mantidos em frente a estruturas militares. Também estão agora buscando comprovação de que ele participara da organização e mesmo do financiamento do que ocorreu naquele dia fatídico. E a Procuradoria-Geral da República está sugerindo providências ao Supremo Tribunal Federal, no sentido de declarar inconstitucional tal lei, bem como de investigar as circunstâncias que a motivaram. Ou seja, é bem provável que Bobadra venha a conhecer de perto a mão pesada de seu xará, Alexandre de Moraes.

Sebastião Melo, que já trabalha e articula apoios para sua reeleição, nada de braçada no ninho da extrema-direita, mas tenta ainda manter votos do outro lado do balcão, onde ele esteve no início de sua trajetória. Por causa deste segundo grupo, mantém cautela e busca parecer neutro. Mas, hoje em dia, está muito mais para Praça da Encol do que Humaitá, Vila Nova ou Restinga. E se não tem aqui o apoio do agronegócio, sobra o querer bem de outros empresários que têm sido muito agradecidos por ele. Bobadra ainda estivesse na Câmara e poderia fazer um agradinho ao chefe do Executivo, propondo um Dia da Especulação Imobiliária. O que seria sancionado mais rápido e diretamente.

1º.09.2023

Notas explicativas: (1) O blog esteve com problemas técnicos um tanto inexplicáveis, que não permitiam a publicação de textos, desde 24 de agosto. Agora, na retomada – ainda em caráter precário –, essa primeira postagem foi mantida com a data na qual deveria ter sido originalmente colocada à disposição dos leitores. (2) Durante este período de “silêncio” a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, por livre e espontânea pressão, revogou a lei do Dia do Patriota. O texto que propunha a revogação, da vereadora Karen Santos (PSOL), passou por três comissões da Casa em apenas três horas, quando a média de projetos semelhantes fica em 45 dias. A votação, com 31 votos favoráveis e uma abstenção, foi feita em exatos um minuto e 54 segundos. E o prefeito Sebastião Melo sancionou a revogação em menos de 24 horas. Tal celeridade deveria valer para todos os projetos de real interesse da comunidade porto-alegrense, mas infelizmente isso não acontece.

O cartunista Iotti sugeriu que Porto Alegre tivesse também um Monumento ao Patriota

Se você gostou desta crônica, garanta a continuidade do blog com uma doação. Isso ajudará a cobrir custos com sua manutenção. Faça isso usando a Chave PIX virtualidades.blog@gmail.com. Essa ajuda nos é indispensável, independentemente do valor com o qual você contribua.

O bônus de hoje é com o grupo Calcinha Preta: a música Você Não Vale Nada, Mas Eu Gosto de Você. Essa é uma banda de forró eletrônico, de Aracaju, a capital sergipana. Acesso ao áudio, logo abaixo.

Você Não Vale Nada Mas Eu Gosto de Você – Calcinha Preta