MATAR JORNALISTAS PARA OCULTAR O QUE É INCONVENIENTE

Ao dramaturgo grego Ésquilo, reconhecido como o “pai da tragédia”, é atribuída a frase “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. Em tempos mais recentes, existe quem associe tal afirmação ao escritor britânico Samuel Johnson (1709-1784) ou ao político Philip Snowden (1864-1937), também britânico. O que apenas comprova que ambos bebiam nesta mesma fonte. Depois deles, também o senador estadunidense Hiram Johnson (1866-1945) proferiu algo semelhante, em discurso feito no congresso do seu país, em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial: “The first casualty when war comes is truth”. Todos estavam certos. E não importa a época ou os envolvidos. Ou seja, não haveria razão para ser diferente no conflito mais recente entre Israel e o Hamas.

Dados oficiais do Committee to Protect Journalists (CPJ), atualizados até o dia 8 de outubro de 2025, apontam para a confirmação de terem sido assassinados 239 jornalistas e trabalhadores de mídia em Gaza, Iêmen, Líbano e Irã, desde 7 de outubro de 2023. Mas, segundo o Escritório da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos (OHCHR), esse número é ainda levemente maior: seriam 247. Apenas na Faixa de Gaza 197 deles foram abatidos em ações perpetradas pelas forças armadas israelenses. Segundo relata a International Federation of Journalists (IFJ), em relação ao número total, 138 eram profissionais palestinos que trabalhavam contratados por agências internacionais de notícias. Essas não tinham permissão de Israel para deslocar equipes próprias para a área. A mais recente dessas mais de duas centenas de mortes ocorreu no último domingo, dia 12, três dias depois de ter sido anunciado um armistício.

A vítima foi o jornalista palestino Saleh al-Jafarawi, também conhecido como Saleh Aljafarawi – devido à transliteração do árabe para o alfabeto latino –, de 28 anos. Ele foi abatido com sete tiros quando trabalhava no bairro de Al-Sabra, no que restou da cidade de Gaza (*). Formado pela Universidade Islâmica de Gaza, em 2019, ele ganhara notoriedade ainda antes de receber seu diploma, quando da cobertura da Grande Marcha de Retorno, em 2018. Era uma figura proeminente nas mídias sociais, com presença significativa, postando vídeos e relatos sobre a realidade da região devastada, documentando também o sofrimento civil. Ainda era cantor.

Alguns meios de comunicação israelense costumavam usar o apelido de “Mr. FAFO”, quando se referiam a Saleh. Seria a abreviatura de uma expressão inglesa: “Fuck Around and Find Out”, o que traduzido de forma livre seria como “Faça besteira e descubra as consequências”. E foi com essa expressão que comunicaram seu assassinato. No exterior, assim como entre os palestinos, houve outro tipo de reação: entre os primeiros, com respeito; em Gaza, com admiração e considerando ter sido ele um mártir. Nas suas derradeiras postagens estão manifestações de alívio pelo iminente final das hostilidades. Suas últimas palavras registradas foram de alegria, alívio e esperança.

Consta que seu nome estava numa lista, ao lado de Anas Al Sharif e de Hossam Shabat, como “necessários de neutralização”. Esses dois já haviam sido mortos: o primeiro em um ataque aéreo direcionado a uma tenda onde jornalistas estavam abrigados, próxima ao hospital Al-Shifa. O que resultou também nas mortes do correspondente Mohammed Qreiqea, dos cinegrafistas Ibrahim Zaher, Mohammed Noufal e Moamen Aliwa, e de outros dois jornalistas freelancers. O segundo, quando teve seu automóvel atingido por míssil certeiro, próximo ao Indonisian Hospital, em Beit Lahia. O ataque resultou ainda na morte de Mohamed Mansour, outro jornalista, que estava com ele no veículo.

Que fique claro não existirem lado bom e lado ruim, numa guerra. Todos têm o mesmo interesse de dominar as narrativas. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista controlava a mídia com mãos de ferro, através dos seu Ministério da Propaganda, que era liderado por Joseph Goebbels. Jornalistas só podiam publicar notícias que fossem favoráveis ao regime. Informações contrárias podiam levar à prisão, garantir vagas em campos de concentração e até execução. No mesmo período o Japão imperial censurava quaisquer derrotas suas nas frentes de batalha, permitindo a divulgação apenas de relatos vitoriosos e patrióticos. E os Estados Unidos tinham seu Office of Censorship, que revisava até mesmo a correspondência dos militares, e impedia notícias contrárias aos seus interesses. Todos policiando a verdade dos fatos. Quanto ao número de mortes que também ocorreram, nem todas apontadas como “perdas normais e previsíveis”, há estimativas de 150 jornalistas assassinados. Só que aquele conflito foi entre muitos países e durou seis anos, ao contrário do que aconteceu agora em Gaza, envolvendo apenas dois lados e durando dois anos. O que comprova a letalidade muitíssimo maior.

15.10.2025

(*) Gaza é uma cidade histórica localizada na faixa costeira que leva o mesmo nome, na Palestina. É uma das cidades mais antigas do mundo, com registros de ocupação humana que remontam a cerca de 3.500 anos antes de Cristo. Ao longo de sua história, ela foi governada por diferentes impérios, incluindo egípcios, filisteus, romanos, bizantinos, árabes e otomanos, o que lhe conferiu uma rica herança cultural e histórica. Hoje, Gaza é – ou foi, antes da destruição recente – o maior centro urbano da Faixa de Gaza, território com cerca de 41 km de comprimento e largura variando entre 6 a 12 km, entre Israel e o Mar Mediterrâneo.

P.S. Na fotografia que ilustra essa crônica estão as fotos dos cinco jornalistas que foram mortos propositalmente, durante um segundo ataque ao hospital Nasser, em Khan Younis. São eles Miriam Dagga (Associated Press), Moaz Abu Taha (NBC), Mohammad Salama (Al-Jazeera), Ahmad Abu Azis (Quds Feed Network) e Hussam al-Masri (Reuters).

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O bônus de hoje inclui dois vídeos e uma música. Um dos vídeos mostra o momento em que um míssil de Israel atinge o hospital Nasser, em Khan Younis, na Faixa de Gaza, enquanto equipes de resgate removiam os corpos das vítimas de outro bombardeio ocorrido minutos antes. Isso resultou na morte de cinco jornalistas. O outro mostra Saleh Aljafarawi brincando com uma criança, em um dos raros momentos de tranquilidade na cobertura do conflito. Depois temos o clipe de A Paz, com Nádia Figueiredo, Gilberto Gil e João Donato.