DESPEDIDAS SEM LÁGRIMAS

Se torna muito mais fácil perceber porque a prefeitura não estava nem aí para a fiscalização das condições da pousada que incendiou e de outras que contrata, quando se sabe o que houve nos velórios de quatro das vítimas fatais do incêndio. Nenhum familiar ou amigo compareceu. Após, seus corpos desceram para as sepulturas acompanhados da mesma solidão e do mesmo descaso que tiveram em vida. Eles já não existiam antes da sua morte. Eram ninguém, figuras descartadas pela sociedade. Só mesmo o céu chorou, com a chuva que caía na tarde do sábado.

Maribel Teresinha Padilha, Dionatan Cardoso da Rosa, Julcemar Carvalho Amador e Silvério Roni Martin de seu tinham apenas os nomes, que cito aqui em reverência. E deles sobrou ao menos as impressões digitais, que puderam ser comparadas com cópias de documentos que a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) guardava. Também foi sepultado, mas com familiares presentes, Anderson Gaúna Corrêa. Quanto aos outros cinco corpos, está sendo aguardada a realização de exames de DNA ou de arcada dentária para que sejam identificados.

A psicologia reconhece a solidão como sendo uma condição associada à dor e à tristeza. Quem se sente só percebe em seu entorno e dentro de si um vazio, uma desimportância, uma não identidade. Pouco importa se a pessoa tem ou não real desejo da companhia de outras, de pertencer. Isso porque não carrega a impressão de que possa vivenciar isso. Acredita não ter ou não merecer essa oportunidade. Já o abandono, esse vem de fora, ele é externo ao indivíduo. É a renúncia consciente ou não de terceiros ou da sociedade em relação ao indivíduo. Trata-se de um desinteresse, uma invisibilidade. Assim como se o “problema” não visto deixasse de existir.

O mundo contemporâneo, organizado em torno da estrutura capitalista e da valorização do consumo, não reconhece como digno de viver aquele que não é produtivo. O que não agrega aquilo que a sociedade considera importante só tem valor enquanto possibilidade de gerar ganho indireto para outros. Se não está vendendo seu tempo, seu trabalho, que venda a sua presença, a sua existência inútil. Como ser um número dentro de uma organização que é paga pelos poderes públicos, que o fazem como forma de parecer que se importam, que cuidam de todos de forma igual. O que vive na rua não está sendo acolhido por ser humano, mas porque aplaca consciências e dá lucro com aparência de honesto a quem nem parece ser. Essa foi a triste realidade prévia: ela antecedeu ao incêndio e deve sobreviver a ele, tão logo nos esqueçamos deste “lamentável incidente”.

Não quero terminar sem reconhecer aqui a generosidade da Funerária Angelus, na pessoa do seu diretor Ary Bortolotto, que fez os serviços fúnebres gratuitamente, fornecendo os ataúdes e colocando sobre cada um deles coroa de flores com o nome da pessoa. Ou seja, nem isso foi a prefeitura municipal de Porto Alegre que custeou, apesar de todas as manifestações cheias de promessas feitas pelo prefeito Sebastião Melo. Sugiro ainda que a leitura continue mais abaixo, após o bônus de hoje, porque listei uma série de informações relevantes sobre o caso.

29.04.2024

Matéria de capa no jornal Boca de Rua, em 2022, alertava para o risco de incêndios na Pousada Garoa. Melo não leu

O bônus de hoje é a música Lei da Vida, com a cantora e compositora paulistana Sabrina Lopes.

MAIS COISAS QUE PRECISAM SER DITAS:

1)   Se a lei resultante da comoção pós tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, não tivesse sido “flexibilizada” pela ação de parlamentares mais preocupados em atender demandas de empresários, ao invés da segurança da população, a intensidade do incêndio da Pousada Garoa teria sido muito menor. Ela previa a obrigatoriedade de a edificação ter hidrantes e revestimento adequado, para dificultar a propagação das chamas.

2)   Matéria da Matinal Jornalismo revela que o proprietário da rede de pousadas Garoa, André Luis Kologeski da Silva, havia sido condenado em dois processos por estelionato. Foi por ter ludibriado pessoas com anúncios de aluguel de imóveis que não eram de sua propriedade. Mas, ao que tudo indica, a prefeitura de Porto Alegre não busca saber dos antecedentes das pessoas responsáveis por empresas com as quais firma contratos milionários. Ou sabe e não se importa com isso.

3)   Cezar Schirmer (MDB), que era prefeito de Santa Maria quando da tragédia da Boate Kiss, é atualmente o Secretário Municipal de Planejamento, na administração de Sebastião Melo, seu companheiro de partido.

4)   O jornal Boca de Rua, que é feito por moradores em situação de rua na capital gaúcha, com o auxílio de profissionais voluntários, foi barrado e não pode participar da coletiva de imprensa na qual a prefeitura procurava se explicar sobre o incêndio. A publicação já havia feito denúncias, no passado, contra a Pousada Garoa e as péssimas condições do serviço prestado.

5) Uma estratégia adotada pelo prefeito de Porto Alegre para afastar de si e dos seus secretários a responsabilidade em relação ao incêndio que teve dez vítimas fatais foi a de transferir para os Bombeiros – e o governador Eduardo Leite, por tabela –, alegando não terem feito corretamente o seu trabalho. Mas, em momento algum falou sobre a falta das vistorias que deveria ter feito e que só agora começarão. Convém lembrar que o encaminhamento do PPCI feito em 2019 sequer informava que o local seria uma pousada. E também que o processo não teve continuidade por parte do solicitante.

6) Quem acessa o site da Pousada Garoa se depara com imagens de quartos que, mesmo simples, são limpos e bem mobiliados. Entretanto, a RBS TV entrou em endereços da rede, com uma câmera escondida, revelando que a realidade é bem outra. Em pensão que fica na José do Patrocínio, no bairro Cidade Baixa, se viu em um quarto apenas um colchão apodrecido e um pequeno armário, bem velho. Segundo a reportagem, o cheiro era forte e desagradável. E havia lixo no corredor.

7) Outro detalhe, esse em pousada na Júlio de Castilhos: não havia sequer um único extintor de incêndio, apesar de um suporte para a colocação do equipamento estar visível. Ou seja, se as vistorias agora prometidas não levarem a mudanças profundas, outras tragédias anunciadas irão se seguir, mais cedo ou mais tarde.

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PALMEIRAS SOBRE A PONTE

Há coisas que só acontecem e existem em Porto Alegre. Algumas delas reais, outras imaginárias, mas com certeza todas únicas. Vamos desde o autoproclamado mais belo pôr-do-sol do mundo, até a existência de uma rede de túneis subterrâneos que estariam espalhados por diferentes pontos da área central da cidade. Estes teriam sido construídos para uso como rota de fuga para autoridades e figuras proeminentes, sendo muito mais lógico que não passem de uma lenda urbana.

Algo bem diferente do que de fato aconteceu na Rua do Arvoredo, no Centro Histórico, onde o brasileiro José Ramos, com a sua esposa húngara – nunca tivemos aqui sequer consulado, muito menos uma embaixada que garantisse refúgio – Catarina Palse e o açougueiro alemão Carlos Claussner matavam pessoas e produziam linguiças com carne humana. Também só aqui tem o colossal X-Calota, lanche que leva esse nome por seu tamanho e que não paga quem consegue comer ele inteiro. Feito com rês, frango e porco, felizmente.

Uma das características dos moradores, sejam naturais da cidade ou seus filhos adotivos, é que tendem a ser muito bairristas. Como isso, enxergam com lente de aumento todas as qualidades do local, enquanto desconhecem seus defeitos. Tudo o que é bom por aqui é superlativo. Baita mesmo. Até as surpresas. Como a de se deparar com algumas altas palmeiras plantadas não em canteiros centrais e parques, como era de se esperar, mas sobre uma ponte existente no cruzamento de duas das principais avenidas da cidade. Se para os residentes isso parece muito normal, nem merecendo sequer uma única expressão de espanto, não deve ser igual com visitantes e turistas.

As palmeiras sobre a ponte chamaram primeiro minha atenção quando eu as observava de uma das janelas do Hospital Ernesto Dorneles. Meu pai esteve internado lá em duas longas ocasiões, não tendo saído vivo na segunda. Como eu era responsável por ficar com ele durante várias horas nos dias e em tantos pernoites, seguido tinha que me distrair olhando o movimento na confluência das avenidas. Não existiam os celulares, para se passar o tempo com vídeos, música e textos. Assim, o período em que ele dormia ficava longo demais, até mesmo para os livros que às vezes eu levava. Então, os transeuntes, os veículos e as palmeiras faziam companhia para o acompanhante.

Soube depois que as Palmeiras-da-Califórnia tinham sido postas ali por descuido de funcionários da prefeitura. Estavam eles participando de um esforço para ampliar a arborização da cidade, dentro das programações do seu bicentenário, em 1940. E aqui já se tem uma controvérsia, porque ainda se considerava, naquela ocasião, que a nossa capital tivesse sido fundada no ano de 1740. Tal ideia persistiu por bom tempo, até que o historiador Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007) defendeu uma nova tese, que foi aceita. Passou a valer a data de 26 de março de 1772 como a da verdadeira fundação de Porto Alegre, pois foi quando se criou de fato a Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, com a desvinculação do município de Viamão.

Enfim, voltando aos descuidados funcionários públicos, por acidente eles nos deixaram um legado muito interessante e bonito. As palmeiras estavam sendo plantadas ao longo de toda a Avenida João Pessoa. Já existia a ponte sobre o Arroio Dilúvio, que corre no centro da Avenida Ipiranga. E eles simplesmente continuaram fazendo o plantio, sem parar naquele trecho pequeno. Como elas não têm a raiz principal, não causam danos ao calçamento. E também conseguiram sobreviver com tão pouco solo.

Quanto à ponte em si, ela é obra do arquiteto catarinense Christiano de La Paix Gelbert. As escadarias projetadas descem pelas laterais até a margem do canal. E serviam na parte baixa como embarcadouro, além de local de venda de verduras e frutas. Isso, evidentemente, na época na qual as águas eram navegáveis e límpidas, no final da década de 1950. De lá trouxemos saudades e as palmeiras, que levam nossos olhares em direção ao céu, fugindo das águas hoje poluídas.

13.04.2024

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O bônus de hoje inicia com o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, um grande expoente do romantismo brasileiro, em declamação de Adriana Lopes. Depois temos o áudio da música As Árvores, com Arnaldo Antunes.

As Árvores – Arnaldo Antunes