DESENVOLVIMENTO E BRUTALIDADE EXEMPLARES
Minha filha e meu genro foram à Holanda, onde dias atrás participaram da Maratona de Amsterdã. Aproveitaram para também visitar a Bélgica e, de ambos os países, nos enviaram muitas fotos e relatos. Isso confirmou o que se sabia, sobre a beleza, o desenvolvimento, a cultura e o quanto acrescenta visitar e conhecer locais como esses. Ambos os países são reconhecidos pela diversidade em termos de música, gastronomia, arte e pela estrutura que oferecem, por exemplo, no seu sistema de ensino e o bom funcionamento dos serviços públicos, com qualidade de vida exemplar. Lugares ótimos para se visitar e morrer de uma inveja boa, aquela que nos faz sonhar que por aqui um dia se possa ter coisas semelhantes, sem que se perca aquilo que se tem, que nos é peculiar e positivo.
Aqui, um parêntese necessário: embora no Brasil ainda se use chamar o país de Holanda, desde 1º de janeiro de 2020 seu nome oficial é Países Baixos. A mudança foi resultado de uma campanha lançada pelo governo, que buscava evitar a continuidade do hábito de generalizar a identificação, uma vez que são doze as províncias que compõem o seu território e apenas duas possuem o termo anterior: Holanda do Norte e Holanda do Sul. No idioma neerlandês, o nome oficial é Netherlands, que significa “terras baixas”, fazendo referência ao fato de que a geografia do país o constitui parcialmente abaixo do nível do mar.
Sobre a Bélgica, o país é multifacetado também em função do ambiente multilíngue e cosmopolita. Eu, que sou um amante dos quadrinhos, tenho enorme admiração por ter sido ela a pátria de obras-primas do gênero, como o inigualável Asterix, de Uderzo e Goscinny; Tintim, que foi fruto da criatividade de Hergé; Lucky Luke, de Morris; Os Smurfs, aqueles seres azuizinhos que vieram ao mundo graças ao cartunista e roteirista Pierre Culliford, o “Peyo”; e outros menos conhecidos no Brasil, como Spirou & Fantasio e também Marsupilami, ambos de André Franquin.
Mas, como nada neste nosso mundão é perfeito, foi belga um dos seres humanos mais repugnantes e cruéis de toda a história: o Rei Leopoldo II. Ele foi proprietário – a expressão é exatamente essa, não há engano no que escrevo – do Congo, localizado na África Central. A Conferência de Berlim, ocorrida em 1885, referendou isso, considerando que o território era privado e do rei. Deste modo, ele fez o que bem entendeu com as terras e o povo, durante 23 anos, até 1908. Ao longo desse tempo, se sabe que ele massacrou mais de dez milhões de africanos, com ordens expressas para que suas mãos e órgãos genitais fossem cortados, os submetendo a trabalho forçado, mutilando e matando também crianças, determinando que aldeias fossem destruídas pelo fogo. Seus generais eram orientados a cortar as cabeças de homens e pendurá-las onde os outros pudessem ver, violentar as mulheres negras e pendurar seus filhos em cruzes.
Havia uma cota diária para o recolhimento do látex, uma vez que o rei aproveitava o “boom” da borracha para garantir divisas para seu país. Então, quem não alcançava este número determinado via um dos seus familiares pagarem com a integridade física ou a vida. Isso era cumprido pela milícia anglo-belga que teve permissão para se estabelecer no Congo para defender os interesses de empresas. Era uma espécie precursora das parcerias público-privadas que temos agora. O homem que está na foto que ilustra esse texto se chamava Nsala. O relato do que aconteceu com ele está no livro “Don’t Call Me Lady” (Não me Chame de Senhora), de Alice Seeley, que também é autora da imagem. Os supervisores belgas cortaram a mão e o pé de sua filha Boali, de cinco anos de idade, como forma de punição. Depois, mataram também sua esposa e as canibalizaram. Como “presente”, devolveram ao pai as “sobras” do corpo da criança que ele tanto amava.
Assim como a Áustria não tem culpa de ter sido berço de Adolf Hitler, a Bélgica como um todo não pode ser responsabilizada por Leopold II. Só que sua história não deve ser esquecida. A gente precisa ter nela um exemplo daquilo que não se pode mais permitir que aconteça. Apesar de, no fundo, estarmos outra vez todos nós de braços cruzados diante de outras tantas atrocidades que continuam ocorrendo em diversos países. Ou sendo coniventes com a chegada ao poder de pessoas perigosas, cujo histórico de desumanidade só não é igual àquele porque a época atual é um pouco diferente, os “freios” sendo um tanto mais eficazes. Mas, dar chance ao azar, apoiar armamentistas, fascistas, negacionistas, gente que considera negros e indígenas inferiores – só servem para mão de obra barata e periférica, ou precisam ser afastados das suas terras ou mortos, para facilitar desmatamento e garimpo ilegais – é uma maneira de flertar com algo muito perigoso. Depois que a besta aflora, não é fácil levar ela de volta para seus porões imundos.
31.10.2024

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Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmenteO bônus de hoje é o áudio da música É Bom Ser o Rei, interpretada pelo elenco da peça teatral “A Jornada Para Belém”. Na realidade o texto se refere ao rei Herodes, outro personagem infame da história. Mas, o modo como expõe sua tirania e crueldade serve para ilustrar o texto que narra a brutalidade de Leopoldo II. A letra ironiza a celebração de uma autoridade absoluta, o poder sobre a vida e a morte, a insaciável sede de controle, o risco que representa o poder concentrado.