PALMEIRAS SOBRE A PONTE

Há coisas que só acontecem e existem em Porto Alegre. Algumas delas reais, outras imaginárias, mas com certeza todas únicas. Vamos desde o autoproclamado mais belo pôr-do-sol do mundo, até a existência de uma rede de túneis subterrâneos que estariam espalhados por diferentes pontos da área central da cidade. Estes teriam sido construídos para uso como rota de fuga para autoridades e figuras proeminentes, sendo muito mais lógico que não passem de uma lenda urbana.

Algo bem diferente do que de fato aconteceu na Rua do Arvoredo, no Centro Histórico, onde o brasileiro José Ramos, com a sua esposa húngara – nunca tivemos aqui sequer consulado, muito menos uma embaixada que garantisse refúgio – Catarina Palse e o açougueiro alemão Carlos Claussner matavam pessoas e produziam linguiças com carne humana. Também só aqui tem o colossal X-Calota, lanche que leva esse nome por seu tamanho e que não paga quem consegue comer ele inteiro. Feito com rês, frango e porco, felizmente.

Uma das características dos moradores, sejam naturais da cidade ou seus filhos adotivos, é que tendem a ser muito bairristas. Como isso, enxergam com lente de aumento todas as qualidades do local, enquanto desconhecem seus defeitos. Tudo o que é bom por aqui é superlativo. Baita mesmo. Até as surpresas. Como a de se deparar com algumas altas palmeiras plantadas não em canteiros centrais e parques, como era de se esperar, mas sobre uma ponte existente no cruzamento de duas das principais avenidas da cidade. Se para os residentes isso parece muito normal, nem merecendo sequer uma única expressão de espanto, não deve ser igual com visitantes e turistas.

As palmeiras sobre a ponte chamaram primeiro minha atenção quando eu as observava de uma das janelas do Hospital Ernesto Dorneles. Meu pai esteve internado lá em duas longas ocasiões, não tendo saído vivo na segunda. Como eu era responsável por ficar com ele durante várias horas nos dias e em tantos pernoites, seguido tinha que me distrair olhando o movimento na confluência das avenidas. Não existiam os celulares, para se passar o tempo com vídeos, música e textos. Assim, o período em que ele dormia ficava longo demais, até mesmo para os livros que às vezes eu levava. Então, os transeuntes, os veículos e as palmeiras faziam companhia para o acompanhante.

Soube depois que as Palmeiras-da-Califórnia tinham sido postas ali por descuido de funcionários da prefeitura. Estavam eles participando de um esforço para ampliar a arborização da cidade, dentro das programações do seu bicentenário, em 1940. E aqui já se tem uma controvérsia, porque ainda se considerava, naquela ocasião, que a nossa capital tivesse sido fundada no ano de 1740. Tal ideia persistiu por bom tempo, até que o historiador Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007) defendeu uma nova tese, que foi aceita. Passou a valer a data de 26 de março de 1772 como a da verdadeira fundação de Porto Alegre, pois foi quando se criou de fato a Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, com a desvinculação do município de Viamão.

Enfim, voltando aos descuidados funcionários públicos, por acidente eles nos deixaram um legado muito interessante e bonito. As palmeiras estavam sendo plantadas ao longo de toda a Avenida João Pessoa. Já existia a ponte sobre o Arroio Dilúvio, que corre no centro da Avenida Ipiranga. E eles simplesmente continuaram fazendo o plantio, sem parar naquele trecho pequeno. Como elas não têm a raiz principal, não causam danos ao calçamento. E também conseguiram sobreviver com tão pouco solo.

Quanto à ponte em si, ela é obra do arquiteto catarinense Christiano de La Paix Gelbert. As escadarias projetadas descem pelas laterais até a margem do canal. E serviam na parte baixa como embarcadouro, além de local de venda de verduras e frutas. Isso, evidentemente, na época na qual as águas eram navegáveis e límpidas, no final da década de 1950. De lá trouxemos saudades e as palmeiras, que levam nossos olhares em direção ao céu, fugindo das águas hoje poluídas.

13.04.2024

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O bônus de hoje inicia com o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, um grande expoente do romantismo brasileiro, em declamação de Adriana Lopes. Depois temos o áudio da música As Árvores, com Arnaldo Antunes.

As Árvores – Arnaldo Antunes

O SAL DA VIDA, O SAL DA TERRA

A expressão “sal da vida” acompanha o homem desde a Antiguidade e sempre teve duas conotações. Na dimensão meramente terrena mostra o quanto a substância tem importância para nossa sobrevivência física. Mas, com muito maior significado, na dimensão religiosa evidencia a ligação do homem com o sagrado. Interessante é que em ambas as situações o sal é a preservação, aquilo que garante a existência sem a corrupção e a degradação física (com o uso em alimentos) ou ética (no entendimento da vida verdadeira). Moisés lembrava que a carne precisava ser salgada antes da oferta, o que pode ser conferido em Levítico 2:13. Do mesmo modo, dizia que podemos e devemos preparar o mundo para o Senhor, sendo cada um de nós como o “sal da terra”. Sendo objetivo, o sal – do mesmo modo que o são a boa vontade e a temperança – seria a proteção contra todo tipo de deterioração, desde que utilizado com a devida parcimônia.

Salgado é um sobrenome de origem ibérica. Na Espanha era tido como a indicação de um lugar, enquanto em Portugal designava um indivíduo ou pessoa que era graciosa, que tinha “sal”. Isso porque aquela substância, então bastante incomum e difícil de ser encontrada, era apreciada na Europa Medieval. Sebastião Salgado é um mineiro nascido em Aimorés, que se formou em Economia pela Universidade Federal do Espírito Santo e se tornou mundialmente famoso por seu trabalho como fotógrafo. Ele há muito é um verdadeiro ícone, com suas inconfundíveis fotos em preto e branco sempre mostrando questões humanitárias. Elas mostram quem não seria visto de outra forma: os pobres, os indígenas, os vitimados pela desigualdade social e pelas guerras.

Homem profundamente ligado às coisas da terra, para a qual foi e é um sal dadivoso, Sebastião Salgado contribuiu a vida toda para causas da ONU relacionadas à infância, aos refugiados e à saúde. Apoiador da Anistia Internacional e da ONG Médicos Sem Fronteiras, junto com sua esposa, a produtora gráfica e cinematográfica Lélia Wanick Salgado, trabalha em um projeto de reflorestamento comunitário em seu estado natal, o Instituto Terra. Nos últimos 25 anos o casal foi responsável pelo plantio de nada menos do que 2,5 milhões de árvores nativas de 290 espécies diferentes. Com isso, restauraram 1.500 acres de terra, fazendo ressurgir um pedaço da Mata Atlântica. Mais de 170 espécies de aves já foram identificadas na área. E centenas de nascentes estão em processo de recuperação. Hoje em dia é possível realizar visitas guiadas ao local, que recebe escolas e grupos de interessados em questões ambientais. Isso ganhou mais de uma vez grande destaque na mídia internacional. Aqui dentro de nosso país, no entanto, não teve a mesma repercussão que merece.

As fotografias de Salgado têm como característica muito forte o uso da luz e da escuridão, em contrastes intensos. As expressões faciais são outro ponto de destaque, com rostos graves, marcados com os sulcos que o tempo cria. Toda a sua obra pode ser chamada de documental e não raras vezes foram fruto de anos de dedicação a um tema. Um bom exemplo é a série “Trabalhos Rurais”, à qual se dedicou por seis anos, entre 1986 e 1992, retratando formas desta atividade em todo o mundo. No total ele tem cinco livros publicados com elas, sempre mantendo o caráter de denúncia e demonstrando uma coerente luta em prol do resgate da dignidade humana.

Um acervo de 24 quadros com fotos de Salgado foi novamente colocado em uma das salas do Ministério das Relações Exteriores, depois de passarem escondidas no subsolo do Itamaraty, durante o último governo, por ordem presidencial e do ex-chanceler Ernesto Araújo. Do mesmo modo, 15 outras de suas obras voltavam a ser expostas na sede da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a FUNAI, depois que o seu então presidente, Marcelo Xavier, as mandou retirar em 2020. São duas oportunidades que retornam para que se veja fragmentos de realidade que alguns preferem manter escondidas. Esquecidas mesmo, se isso for possível. Mas o sal felizmente segue resistindo contra a degradação. E a corrupção jamais conseguirá de fato impedir a volta da vida.

20.12.2023

Indígenas na Amazônia, fotografados por Sebastião Salgado

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O bônus de hoje é duplo. Temos primeiro a música de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, Sal da Terra. A interpretação é de Simone, ao vivo. Depois temos a Missa da Terra Sem Males, de Dom Pedro Casaldáliga (um bispo católico nascido espanhol e naturalizado brasileiro, que faleceu em 2020), Pedro Tierra e Martin Coplas.