ATIRE A PRIMEIRA PEDRA
Para quem quiser conferir, a frase está no Evangelho de João, capítulo 8, versículo 7. Jesus teria dito “atire a primeira pedra aquele dentre vós que estiver sem pecado”. Ela seria a resposta a um desafio que lhe foi feito por fariseus e por mestres da lei que queriam apedrejar uma mulher que havia praticado adultério. No caso da situação referida, estavam vendo as “falhas” cometidas pela mulher e esquecendo dos seus próprios “pecados”, talvez muito graves. Isso reforça aquilo que de certa forma sempre se soube: que é muito mais fácil ver os erros dos outros do que admitir os nossos. E todos nós os cometemos.
Mais de dois mil anos se passaram e o ser humano não melhorou em nada, quando avaliado por essa sua mania de julgar o comportamento alheio. Nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro segue sendo muito limitada. Sem contar que seguidamente usamos pesos diferentes para avaliar situações, quando se está ou não envolvido de forma direta. Evidente que o nosso estar e existir em sociedade sempre implica que se esteja recebendo e dando atenção ao mesmo tempo, quase que o tempo todo. O que determina julgamentos. A questão é quando isso vai além de uma avaliação sobre algo a fazer ou alguma escolha, chegando a aspectos morais.
O problema não está no verbo julgar, que pode ser usado para qualquer tipo de avaliação. Se devemos ou não levar um guarda-chuva, devido às previsões do clima. Se é conveniente ou não aceitar uma nova proposta de emprego. Se há afinidades suficientes para se iniciar ou prosseguir com relacionamentos. O questionável é esse julgar condenatório, usado para apontar quem não pensa ou age como gostaríamos que pensasse ou agisse. Errado é esse entender que os outros precisam ser cópias da melhor imagem que fazemos de nós mesmos, ou ainda exigir que seus desejos e sonhos sejam semelhantes aos nossos. “Narciso acha feio o que não é espelho”, escreveu Caetano Veloso na letra da sua música Sampa.
O julgamento é uma constante, a compreensão é uma raridade. O ideal seria uma inversão nas suas prevalências, mas isso no nosso momento evolutivo atual é mais do que uma improbabilidade: se trata de uma impossibilidade. E o pior é que isso muitas vezes atinge e deixa marcas indeléveis em quem está sendo “julgado” – em muitos casos custa até mesmo sua vida. A avaliação crítica pode vir a desencadear insegurança, fazer com que a pessoa comece a ficar mais atenta ao que os outros pensam e exigem dela, deixando em um segundo plano suas próprias vontades, gostos, crenças, objetivos e sonhos. No esforço de se encaixar nas expectativas alheias, pode abandonar uma essencial fidelidade a si própria. E nossa autenticidade é o que de mais importante podemos ter.
É fundamental que todos entendamos que a perfeição não existe. E que a diversidade e a pluralidade são o tempero da vida em sociedade. Seria terrível viver num mundo padrão, com pessoas idênticas, com nenhuma opinião divergente, com um código moral rígido estabelecendo o império da vergonha e restringindo liberdades. Pensar dessa forma não significa defender a total falta de limites, mas admitir que esses limites não podem ser estabelecidos conforme a nossa vontade. Ou mesmo a vontade de algum grupo. É perceber que circunstâncias podem mudar de lugar as fronteiras do aceitável ou não.
Na verdade, a imensa maioria dos julgamentos sobre o alheio é calcada na moral. E quem faz isso esquece que tal conceito varia conforme a localização e o tempo. A moral e os “bons costumes” da Zona Sul do Rio de Janeiro estão distantes do que é entendido como normal em alguma pequena cidade no interior do Piaui. O que se entende como aceitável hoje em Porto Alegre difere muito do que se aceitava quando a cidade foi fundada, em 1772. Se algum padrão tivesse que ser estabelecido, de modo universal, talvez devesse ser norteado pela ética. Porque essa sim sofre muito menos efeito do passar do tempo, dos aspectos geográficos e culturais.
Dito isso, eu confesso aqui: sim, eu também sou um pecador. “Sou, mas quem não é?”, costumava perguntar o personagem Tavares, de Chico Anysio. Ele era um malandro carioca que vivia bêbado e tinha casado com uma mulher rica que chamava de Biscoito. Essa foi vivida primeiro por Zezé Macedo e depois por Cláudia Rodrigues. Destes esquetes era comum as pessoas acharem graça. A cena da mulher que estava prestes a ser apedrejada e que foi salva por Cristo, se tivesse sido efetivada, não teria nada de engraçado.
12.02.2025

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Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmenteO bônus de hoje é o áudio de Atire a Primeira Pedra, um samba que foi composto por Ataulfo Alves e Mário Lago, no ano de 1943. Ele relata a história de um homem que busca se reconciliar com a mulher amada, apesar das outras pessoas, incluindo ela própria, entenderem ser isso impossível.
Além disso, o mesmo nome teve um antigo programa da Rádio Nacional, que era apresentado por Raimundo Lopes, na segunda metade dos anos 1940. E também em um filme de George Marshall, estrelado por Marlene Dietrich, em 1939.