PRENDERAM O HOMEM PARA MATAR A CAUSA
A prisão do médico obstetra Ricardo Jones, ocorrida na sexta-feira, 28 de março, logo após sua condenação a 14 anos de prisão ao ser declarado culpado de homicídio com dolo eventual, levanta uma questão que vai muito além do que ocorreu no tribunal do júri. O fato que levou ele e sua esposa, a enfermeira Neusa Jones, a julgamento, ocorreu em setembro de 2010, quando um recém-nascido veio a falecer no Hospital Divina Providência. O parto fora domiciliar, feito 24 horas antes por Ricardo e Neusa. Como o bebê apresentou sintomas de desconforto respiratório, os dois e os familiares optaram por levá-lo ao hospital, onde todas as informações necessárias foram repassadas à pediatra de plantão. No entanto, não foi possível evitar a morte por pneumonia congênita e sepse. Neusa também foi condenada – pena de 11 anos de prisão –, mas aguarda em liberdade o resultado do recurso.
A acusação foi baseada em uma suposta demora no encaminhamento do recém-nascido ao hospital, além do fato de Ricardo ter assumido o risco ao realizar o parto sem a presença de um pediatra. A defesa nega tais acusações, afirmando que não há nexo causal entre o atendimento prestado e a morte, uma vez que o bebê nascera bem. E estranha uma série de circunstâncias que cercaram o julgamento. A começar pela mudança no depoimento da pediatra do hospital, que primeiro admitiu ter sido devidamente informada do quadro e mais tarde negou. Alega ainda que houve interferência de um desembargador, que não permitiu a oitiva de dois peritos que apresentou, apesar de permissão anterior ter sido dada pela juíza.
A verdade é que esse caso particular parece estar sendo utilizado como balizador por um poderoso grupo de interesses, que há anos resiste ao fato de estar crescendo o desejo das mulheres por um novo tipo de parto, baseado em evidências. Médicos e enfermeiras obstetras, doulas e mais profissionais que buscam garantir o protagonismo da mãe na hora do parto, encontram forte resistência do sistema hospitalocêntrico que está em vigor. O parto humanizado, mesmo dentro dos hospitais, não é bem aceito. O que dirá então se a parturiente opta por viver esse seu momento no domicílio.
A gestante em questão optara voluntariamente pelo parto domiciliar. Ricardo e Neusa asseguram que seguiram rigorosamente todos os padrões de segurança e de cautela estabelecidos para esses casos. Convém lembrar que o médico é um dos pioneiros e referência nessa técnica no Brasil, tendo feito mais de dois mil partos anteriormente, em uma carreira de 30 anos.
Em nosso país, cerca de 98% dos partos são feitos em hospitais. Mesmo assim, a taxa de mortalidade neonatal – entre o momento do nascimento e os 27 dias seguintes – é muito grande e varia bastante dependendo da região geográfica. Os melhores resultados são verificados no Sul, com a perda de 6,2 a cada mil nascidos vivos e a pior está no Norte, com 22,3 mortes. No mundo todo, aproximadamente um milhão de bebês morrem no mesmo dia em que nascem, todos os anos.
Ana Cristina Duarte, que é obstetriz e ativista do parto humanizado, tendo fundado o Coletivo Nascer na cidade de São Paulo, assegura que esta dupla condenação ocorrida em Porto Alegre não passa de uma “caça às bruxas”. Porque a condenação de Ricardo e Neusa passaria um recado a quem desafia a rentável lógica vigente. Aliás, isso já iniciara em 2016, quando o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul cassou o registro profissional de Ricardo o acusando de negligência por esse único caso. Este mesmo conselho que considerou não ter o médico Leandro Boldrini ferido nenhum princípio ético, mesmo tendo fornecido medicamentos e orientação para o assassinato do próprio filho. E que segue examinando “em sigilo” as acusações contra João Batista do Couto Neto, cirurgião que é réu pelos homicídios de três pacientes e investigado por estar envolvido nas mortes de outros 39 e por lesões em 114, em Novo Hamburgo, na região metropolitana.
Os partos hospitalares movimentam uma poderosa máquina, rendendo valores incalculáveis para hospitais e médicos. Muito mais ainda quando são cesarianas. Esse segundo procedimento, não raras vezes é imposto às parturientes através da disseminação do medo, com a repetida e potencializada explanação de riscos nem todos reais. Além disso, ele permite que médicos marquem data e hora dos nascimentos, facilitando suas vidas, mas não respeitando que as mulheres e os bebês são os verdadeiros astros do espetáculo.
A taxa de cesarianas no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, feita pelo IBGE, era a segunda maior do mundo e seguia crescendo. Estavam em nada menos do que 55% dos partos realizados. No ano seguinte já eram 57,2%. A média mundial é de 21,1%, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que não deveria passar de 15% do total. E a principal causa dessa disparidade nos números brasileiros é o interesse econômico, como colocado no parágrafo anterior.
Para Ricardo e Neusa Jones a esperança talvez esteja no esforço para anulação do anterior e busca por um novo julgamento. Para quem luta contra o sistema hegemônico e sonha com a possibilidade de a gravidez não ser vista como uma espécie de doença, das que sempre precisam de hospitais para tratamento, essa seria também uma possibilidade de justiça. E para quem acredita no parto humanizado, na delicadeza e no respeito que o momento merece, a chance de ter um dos principais defensores desta tese reconhecido e não punido por isso.
06.04.2025

O bônus de hoje é a repetição de um áudio já utilizado aqui no blog, mas que em função do tema pode muito bem ser posto: Sonho Impossível, música de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, composta para ser utilizada no espetáculo O Homem de La Mancha, versão brasileira. A canção original é The Impossible Dream (The Quest), composta por Mitch Leigh e com letra de Joe Darion. Ela foi gravada por Maria Bethânia e lançada no ano de 1975.