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ESTRANHA CARIDADE

Logo após minha formatura fui morar em uma cidade pequena, no interior do Rio Grande do Sul. Mesmo assim, ela era uma espécie de pequeno polo regional, uma vez que algumas outras ainda menores gravitavam ao seu redor, boa parte delas anteriormente distritos dela própria. Uma dessas satélites mantinha, através de um destes clubes de serviço que existem em quase todos os lugares, a tradição de realizar um ou dois – não lembro bem – jantares beneficentes, todos os anos. A renda líquida que esses eventos geravam era destinada em sua totalidade para atender carentes. Se tratava de acontecimento muito concorrido e toda a elite local e mesmo de cidades vizinhas, comparecia.

Claro que existiam despesas. O aluguel da sede do clube, um excelente buffet que era contratado, decoração do salão, algum grupo musical que sempre vinha fazer a animação, despesas com divulgação na mídia regional – no que eu me enquadrava, uma vez que trabalhei cobrindo o evento em mais de uma oportunidade – e outros pequenos custos. Desta forma, mesmo com o ingresso mais caro do que seria em oportunidades distintas, evidente que terminava não sobrando tanto assim, no fechamento das contas. Mas, todos os participantes voltavam para suas casas com os corações tranquilos pela boa e desinteressada ação que acabavam de praticar. Agora, podem acreditar no que eu digo: os vestidos de uma ou duas das senhoras presentes, confeccionados especialmente, com certeza tinham custado mais do que aquilo que sobrou no “frigir dos ovos”.

Muitas outras coisas como essa eu presenciei ao longo da vida. Como assessor de imprensa de uma organização patronal, por exemplo, todos os meses via empresários enviando – numa provocação proposital – aos gestores municipais eleitos uma mensagem que se repetia, sendo nela alterado apenas o valor. Informavam quanto cada uma das organizações que dirigiam tinha gerado de impostos para o município naquele mês. Algo como dizer “muito do que você faz, realiza com recursos que são nossos”. Um ledo engano, ou má fé. Nem mesmo um único centavo de imposto que qualquer empresa recolhe foi de fato pago por ela. Quem destina essa parcela para o erário público é o consumidor dos produtos, uma vez que o valor está embutido no preço, não o fabricante ou o comerciante. Esses são apenas fiéis depositários de algo que em momento algum lhes pertenceu. Compete a eles cobrar e repassar, apenas isso. Assim sendo, se recolhem cumprem com a sua obrigação; não recolhendo são inadimplentes ou, o que é bem pior, sonegadores.

Lembrei dessas coisas agora, quando da tragédia que atingiu municípios do nosso Estado, com a enxurrada de dias atrás. O Governo Federal teve uma grande preocupação no sentido de atender as localidades, destinando recursos e enviando equipes de socorro, além de ter vindo ao Vale do Taquari, com o vice-presidente Geraldo Alckmin e diversos dos seus ministros. Entretanto, uma das muitas medidas anunciadas me leva a pensar: a liberação de valores do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o FGTS. Essa não é a primeira vez que tal iniciativa é levada a cabo. Não apenas o atual governo teve tal ideia, sendo ela relativamente comum e tendo sido adotada por vários outros, em muitas ocasiões como agora.

Mas, que espécie de ajuda é essa? A Caixa Econômica Federal diz mais ou menos o seguinte: “vamos deixar você usar recursos que já são seus, para atender necessidades emergenciais, mesmo sabendo que com isso você pode estar sacrificando um pouco da sua segurança futura”. Como nos exemplos anteriores, é fazer caridade com o chapéu alheio. E com um agravante, porque o atendido é o próprio dono do chapéu. O FGTS foi criado através da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966. E entrou em vigência em 1º de janeiro de 1967. Em tese seria para proteger o trabalhador demitido sem justa causa. Na realidade, foi uma troca um tanto suspeita, vindo para substituir a estabilidade que os trabalhadores tinham antes. Contribuiu foi para facilitar demissões, assim como para estabelecer uma grande poupança nacional para financiar a construção de imóveis.

Em caso de demissão imotivada o trabalhador poderia resgatar o dinheiro, que era acumulado em sua conta através de um percentual de 8% do salário, mensalmente depositado pelo trabalhador. Ele também poderia sacar para a aquisição da casa própria, através do Banco Nacional da Habitação. Hipóteses como casamento e doenças também eram considerados, bem como seus herdeiros recebiam em caso de falecimento. Isso tudo foi sendo flexibilizado de tal forma, ao longo do tempo, que mesmo o propósito não muito sincero do seu início, acabou deturpado.

Vejam que nos dois primeiros exemplos que dei, citei um arremedo de caridade e uma obrigação legal disfarçada de preocupação social. Mas, tão absurdo quanto isso é permitir que a pessoa saque um valor seu, ao mesmo tempo em que acredita que está sendo beneficiada. Ela própria está fazendo por si. Está gastando no presente seus sonhos de futuro. O que sinceramente me constrange, cada vez que vejo colegas jornalistas noticiando o fato com um quase entusiasmo e sem sequer tocar neste detalhe, que não tem nada de desimportante.

23.09.2023

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O bônus de hoje é a música Estrada Nova, de Oswaldo Montenegro e Renato Teixeira. Na abertura do clipe, temos um poema incidental, também de Renato Teixeira.