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GILLETTE E OUTROS SÍMBOLOS

Na época em que eu cursava Jornalismo na PUC/RS havia uma colega que não depilava suas pernas. Visualmente dava para se ver que era antigo esse hábito, que relatava ser um protesto contra o uso da Gillette, um símbolo do capitalismo. Não lembro se ela bebia Coca-Cola ou comia McDonald’s. Agora, é importante frisar que jamais atribuiu sua decisão não depilatória à objetificação do corpo da mulher ou à imposição de uma estética determinada por uma visão masculina, por exemplo. Nada disso. Sua revolta se fixava apenas naquele produto que foi inventado por King Camp Gillette (1855-1932) e se notabilizou por ser composto por uma lâmina muito fina, barata e descartável de aço estampado, que facilitou sobremaneira o barbear. Como eu usava barba longa no mesmo período – não branca como aquela que abandonei não faz muito –, bastava eu bobear e estaria associado à discordância dela.

Outro fato relevante que lembro agora é que ela chegava todos os dias na faculdade em um automóvel com motorista particular, sem atribuir esse privilégio ao capitalismo. Nenhuma crítica ou inveja quanto ao fato, uma vez que eu próprio também me deslocava em um veículo de motor Mercedes Benz, com motorista. A diferença é que o meu tinha ainda um cobrador – Sebastião Melo não era prefeito e a categoria não estava sendo dissolvida –, e eu jamais viajava sozinho com os dois. Em geral ele vinha muito lotado, sem que existisse sequer a fração atual da frota que ostenta aquele ar-condicionado nem sempre ligado.

Conto isso para entrar no assunto do simbolismo que as coisas recebem, eventualmente. Roupas se prestam muito a isso. Nos anos 1960 havia uma revolta contra o soutien, por exemplo. E concomitantemente se acreditava que minissaia também era representação da rebeldia. Uma fábrica de jeans aqui no Brasil passou a adotar como slogan “liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”. Mas esta não chegava nem perto de ter o status de uma Lee autêntica, que vez por outra algum amigo trazia ou conseguia que trouxessem, direto dos EUA.

Nos tempos atuais, qual a graça em ser um “influencer” e não ostentar um relógio muito caro, – e inútil, já que as horas o celular mesmo mostra – como Cartier, Rolex e outros que tais? Como ser um novo rico que se preza, nas regiões Sul e Sudeste, sem comprar um enorme apartamento em Balneário Camboriú? E quanto mais alto o andar, maior a demonstração de poder econômico (e breguice), lógico. Vocês já viram alguma ação da Polícia Federal desbaratando uma quadrilha que não tenha uns três ou quatro automóveis de luxo na garagem no chefe? Isso é tão lugar comum como os óculos de sol e correntes de ouro em alguns policiais civis. Identificam melhor do que a carteira funcional e o distintivo. No passado, fumar era associado a poder e masculinidade, com a indústria ocultando os riscos para a saúde. O cowboy da propaganda do Marlboro morreu de câncer por isso.

Na nossa sociedade de consumo, produtos em geral são adquiridos e consumidos tanto ou mais pelo seu valor intrínseco quanto pela sua real qualidade, necessidade ou relevância. A essência se desloca, muito em função da publicidade, de atributos tangíveis para a questão da marca. O valor deixa de ser utilitário e passa a ser simbólico. O custo-benefício da aquisição se distancia do preço e da durabilidade, alcançando o impacto de uma suposta relevância social. Só isso explica uma bolsa custar R$ 80 mil ou mais. Ter uma peça Hermès, Gucci, Prada ou Chanel oferece uma satisfação pessoal maior do que destinar o mesmo dinheiro para algo mais útil. Vale o mesmo para automóveis Bugatti, Lamborghini, Rolls Royce ou Ferrari. E acreditem: quem tem quaisquer um destes bens não se constrange por isso. Do mesmo modo e com consequência muito mais danosa do que minha colega e suas pernas cabeludas.

13.02.2025

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O bônus de hoje é o áudio da música Pau de Arara, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Mas, essa gravação foi feita ao vivo no Teatro Record, durante o programa O Fino da Bossa. Quem canta é Ary Toledo (1937-2024), que era humorista, teatrólogo e dublador. Ele intercala a letra original com a história fictícia de um nordestino que come Gillette para ganhar uns trocos e enganar a fome. A versão arrancou gargalhadas da plateia, onde também estava Elis Regina, na ocasião.

Pau de Arara (Comedor de Gilletle) – de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, com Ary Toledo