OUTRA VERGONHA HOMENAGEADA

O nome dele era James Marion Sims. Uma estátua sua, no Central Park, em Nova Iorque, reverencia sua trajetória como médico. A ele é atribuída a paternidade da “moderna ginecologia”. Cirurgião reconhecido em seu tempo, o trabalho pelo qual se destacou foi o desenvolvimento de uma nova técnica para reparação de uma situação clínica chamada de fístula vesicovaginal. Esta se caracteriza por uma comunicação anormal entre a bexiga e a vagina das mulheres, que causa perda contínua de urina pelo canal não próprio para tanto. O que, evidentemente, causa impactos na qualidade de vida da pessoa. Portanto, a contribuição dele parece de fato ter sido positiva. Só que a forma como chegou aos resultados está muito além do questionável.

Sims era um racista notório. Para alcançar a técnica cirúrgica que de um modo obsessivo perseguia, ele realizou uma série de intervenções. Mas, fazia isso sempre em mulheres negras e, como as afro-americanas eram escravas, se tornavam compulsoriamente cobaias para seu propósito. O mais grave de tudo: todas as dezenas de cirurgias foram realizadas sem anestesia. Um vergonhoso caso – não o único, convém ressaltar – no qual a profissão médica avançou às custas de uma população vulnerável e indefesa.

Sims exerceu todos os tipos de medicina, de pediatria até cirurgia geral. Também trabalhou como odontólogo. Isso tudo na Carolina do Sul, de onde se mudou para o Alabama após a morte de dois pacientes. No novo Estado, se estabeleceu no Condado de Montgomery. Foi lá que tomou conhecimento da existência de três escravas – Anarcha, Betsy e Lucy – que estavam enfrentando o problema clínico citado, demonstrando seu interesse em examiná-las. Os proprietários das três também quiseram isso, até porque elas não estavam lhes dando retorno financeiro ao se ausentarem do trabalho nas plantações de algodão. Estas foram as principais entre as suas cobaias, não as únicas. No total, ele operou 12 mulheres negras.

Lucy foi a primeira a ficar nua à disposição do médico e seus assistentes. Vários médicos quiseram acompanhar o que seria feito. Ela foi amarrada na mesa para que seus movimentos não atrapalhassem a ação. Quando descrito o que Sims realizou, foi posto que acreditavam que as mulheres negras não sentiam dores com a mesma intensidade que as brancas. Ela permaneceu mais de uma hora naquela situação, sempre consciente. Depois, enfrentou dias de extrema agonia por ter desenvolvido infecção causada por um dos dispositivos que o médico introduziu nela. Esta foi controlada posteriormente, mas o ferimento nunca cicatrizou.

Betsy foi a segunda, também tendo sido um fracasso o trabalho. Consta que com Anarcha Westcott começaram os resultados melhores. Mas, ela foi operada pelo menos duas dúzias de vezes, sem jamais atentarem para a sua dor. Na primeira das ocasiões, tinha apenas 17 anos. Quando anos mais tarde Sims publicou um artigo descrevendo a técnica, este veio acompanhado de ilustrações nas quais ele é mostrado operando mulheres brancas, com a ajuda de uma enfermeira também branca. E as pacientes estão cobertas, cuidado e decência que com as negras jamais teve.

Nenhuma escrava foi apontada pela história como “mãe da ginecologia moderna”. Nenhuma delas foi homenageada com uma estátua. Nove permaneceram anônimas, com essas três apenas tendo seus nomes citados, talvez por descuido, nas narrativas. O que, obviamente, não surpreende em nada. Falta de ética, também nos tempos atuais, ainda ocorre com frequência. Assim como o persistente racismo e a desumanidade.

07.10.2025

Ilustração mostra Sims (à direita), com auxiliares e uma cobaia humana, antes de cirurgia

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O bônus de hoje é o áudio do jazz Alabama, de John Coltrane. Trata-se de uma canção triste e emocionante, sendo um grito contra o racismo e em favor dos excluídos, feito através de um dos saxofones mais conhecidos da história deste gênero musical. A música foi composta dentro do contexto de um crime brutal, quando a Klu Klux Klan assassinou quatro crianças negras num atentado a bomba perpetrado contra igreja que era frequentada por negros, em Birmingham, Alabama.

John Coltrane – Alabama