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DE QUEM É DE FATO A TERRA

Em 1850 o alemão de nome Hermann Bruno Otto Blumenau recebeu, do Governo Provincial, a permissão de ocupação e uso de duas léguas de terras para que estabelecesse uma colônia agrícola, em Santa Catarina. Dezessete colonos chegaram ao local, no dia 2 de setembro daquele ano. Reza a lenda que a recomendação básica que lhes passaram foi a de que evitassem conflitos com os índios xoclengues (botocudos) e kaingang, que habitavam a região. Foi assim que o grupo, ao chegar no local e vendo que uma dessas tribos ocupava um dos lados do rio Itajaí, ficou em outro ponto. Tempos depois, verificando que não sofreriam hostilidades, os alemães foram até a aldeia levar presentes, tentando aprofundar a política de boa vizinhança. E, com eles, fizeram um pedido formal de desculpas por estarem em terras que seriam do povo tradicional. Ao que o cacique teria respondido que, na verdade, aquele pedaço onde estavam os europeus não era dos índios. Diante do espanto do colono e da pergunta óbvia sobre então quem seriam de fato os proprietários, acrescentou o índio: – Aquelas terras são das águas.

Não foi, portanto, por falta de aviso. O conhecimento acumulado, a experiência que tanto vale, permitia que os índios soubessem que de tempos em tempos haveria um alagamento, uma enchente. O que segue ocorrendo até hoje. Os alagamentos se repetem na cidade que resultou daquele agrupamento inicial, sendo que a maior marca atingida na história foi de 17,1 metros acima do nível normal. Quanto à colônia estabelecida, ela também foi crescendo ao ponto de atingir 10.610 quilômetros quadrados. Depois de 1934, no entanto, uma série de desmembramentos que ocorreram deram origem a nada menos do que 38 novos municípios distintos e a área atual de Blumenau tem 519,8 quilômetros quadrados, menos de 5% do que chegou a alcançar.

O modo de vida que todos nós levamos no mundo ocidental contemporâneo segue fazendo com que se confunda conhecimento com instrução e sabedoria com domínio de técnicas complexas. Embora essas tenham extremo valor, não se resume a elas o poder de assegurar o nosso desenvolvimento. Ao contrário: em muitos momentos atrapalham, porque nos deixam cegos em relação ao que de simples existe e que poderia facilitar nossas vidas. Os povos originários detêm conhecimento e sabedoria que muitas vezes subestimamos e que são e serão cada vez mais essenciais para nossa sobrevivência. Mas, ainda há quem subestime também os alertas dados pela ciência, por técnicos que têm a expertise e a capacidade de fazer uma leitura da realidade baseada em dados. Como o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), fez ao desconsiderar propositalmente um relatório de mais de cem páginas, que foi protocolado por área técnica do DMAE e afirmava, de forma categórica, que era urgente se fazer algo em relação ao sistema de contenção de enchentes existente na cidade. Ele nada fez, não tomou qualquer providência.

Na história – real ou não – catarinense, a terra não era dos índios, mas eles tinham e têm noção disso, de que ela quando com maiúscula (Terra) se trata de um ser vivo com o qual se interage e, quando com minúscula, se trata do chão que lhes oferece sustento e recebe os seus antepassados. E respeitam ambas as expressões. A terra não era dos colonos, que se apropriaram de espaços concedidos por um poder que sempre tratou de se autoproclamar proprietário. Voltando os olhos para a nossa realidade, Porto Alegre não é de Sebastião Melo e nem das empresas de construção civil que ele protege e beneficia. Aliás, como nossa memória em geral é bastante curta, quero lembrar de uma passagem dele quando candidato, antes de ter sido equivocadamente conduzido à prefeitura. Lhe foi solicitado, em uma entrevista, que citasse um livro que tivesse sua história ambientada na capital gaúcha. Algo simples assim, uma única obra literária que ele tivesse lido, uma publicação que versasse sobre a cultura, sobre a identidade porto-alegrense. Ele hesitou, sorriu com uma expressão que era por si só a confissão evidente da sua total falta de condições de fazer a citação, e depois disse “o Atlas”.

Pois Melo mentiu também naquela resposta. Ele nem sequer olhara o Atlas, que é uma publicação constituída por uma coleção de gravuras, gráficos, mapas e cartas geográficas que permitem conhecer minúcias relativas à área que abrange. Ele desconhece a topografia da cidade. Os riscos permanentes que ela enfrenta por estar debruçada em um lago que é o depositário de um volume sempre ameaçador de águas provenientes de vários rios. Melo é um blefe. Uma aposta que está custando demasiado cara para a população da cidade que ele não tem condições de dirigir. Essa omissão, essa negligência que beira o crime, resultou em perda de vidas, em destruição de patrimônio, em abalo econômico que sequer ainda se pode estimar, em empobrecimento futuro, em desgaste psicológico de milhares de pessoas. Não por acaso já foi protocolado na Câmara de Vereadores um primeiro pedido de impeachment, que provavelmente não conseguirá alcançá-lo antes do final do mandato. Mas, o voto popular em outubro próximo talvez o retire do sonho da reeleição e o traga para a triste realidade que ele estará legando ao povo de Porto Alegre.

25.05.2024

Hermann Bruno Otto Blumenau, alemão comerciante de terras

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O bônus de hoje é o clipe da música Quanto Vale?, de Emílio Dragão, com ele próprio e Priscilla Glenda nos vocais. Ele foi gravado no Estúdio Mortmer, em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 2016. Trata-se de um grito, um protesto contra os eventos de Mariana, uma outra “tragédia anunciada” que ocorreu em nosso país e até hoje, oito anos depois, segue com a região sem uma plena recuperação. Aliás, por lá também contrataram para a gestão do problema a mesma empresa que agora Sebastião Melo se apressou em contratar para o mesmo fim, sem licitação: a estado-unidense Alvarez & Marsal. “Quanto vale a vida?”, pergunta a letra, lembrando que a Vale do Rio Doce, privatizada, foi responsável pelo desastre.

MUSK E A SOBERANIA BRASILEIRA

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a inclusão do bilionário Elon Reeve Musk, natural de Pretória na África do Sul e naturalizado estadunidense, como mais um dos nomes no inquérito que apura a atuação das milícias digitais em nosso país. A investigação mira grupos que atentaram e seguem atentando contra a democracia brasileira. Essa decisão foi tomada devido ao fato do atual dono do X, novo nome do antigo Twitter, ter simplesmente anunciado que não iria cumprir determinações judiciais e estaria disposto a reativar uma série de perfis suspensos por prática criminosa.

O despacho ordena que a empresa se abstenha da desobediência, sob pena de multa diária de R$ 100 mil por conta que seja tornada outra vez operacional, sem que isso a livre de consequências legais outras. Em seu despacho, o ministro afirma que o empresário iniciou, no sábado 6, “uma campanha de desinformação sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral”. No texto, Moraes ressalta que Musk praticou, em tese, uma “dolosa instrumentalização criminosa” da rede social. Esta prática, reforça o ministro, prosseguiu também no domingo e ocorre de forma sistemática, com notícias fraudulentas sendo espalhadas. Por isso teria determinado a investigação por obstrução à justiça, organização criminosa e incitação ao crime.

A reação do estrangeiro, como um menino mimado que é repreendido, foi dizer que estava sofrendo censura. E que seria um absurdo ter que desativar as contas suspeitas de espalhar desinformação, uma vez que isso afetaria as receitas de sua empresa no Brasil. Como se nosso país estivesse abaixo dos seus interesses pessoais. Com o recrudescimento dos ataques, o advogado-geral da União, Jorge Messias – não confundir, devido ao nome –, declarou ser “urgente regulamentar as redes sociais”. Algo que está sendo feito em diversos países da Europa, por exemplo. Tal medida se faz necessária para que a virtualidade não se torne terra de ninguém. Na opinião dele, “não podemos mais conviver em uma sociedade em que bilionários com domicílio no exterior tenham controle de redes sociais e se coloquem em condições de violar o Estado de Direito, descumprindo ordens judiciais e ameaçando nossas autoridades. A Paz Social é inegociável”.

No seu esperneio, Musk sugeriu que Moraes renunciasse ou sofresse impeachment. E deputados federais eleitos pela extrema-direita não perderam a oportunidade de repercutir este desejo inoportuno, ilegal e impróprio, prestando a ele homenagem no Congresso. Mas, nenhum dos “defensores da família e dos bons costumes” comentou a reportagem recente do Wall Street Journal, um dos principais dos EUA. Segundo a matéria, a conduta do empresário durante suas “atividades recreativas” está trazendo enorme preocupação entre os executivos das suas várias empresas – como Tesla e SpaceX – e os acionistas. Isso porque cresce seu uso de drogas como ketamina, cocaína, LSD e alucinógenos. O costume não é de hoje, mas tem se agravado. Ainda em 2018 esse fato teria preocupado até mesmo a NASA, com quem mantém contratos. Festas com liberação de drogas e imposição de acordos de confidencialidade e restrição ao uso de celulares, são cada vez mais frequentes. E ele já se apresentou no ambiente de trabalho de tal forma transtornado que não foi possível a continuidade de reuniões.

Na opinião de Musk – mesmo quando sóbrio – é dever da democracia garantir que aqueles que dispõem de meios possam mentir livremente, destruir reputações, alavancar candidaturas sórdidas, semear discórdia, difundir negacionismo e trabalhar para o crescimento da desigualdade social. Tudo, evidentemente, lhes garantindo rigorosa impunidade. Ele acha que a lei precisa ser para aqueles que não são como ele. E que a sua casta deve estar sempre acima de qualquer texto legal. Acredita piamente que a ralé aqui do Terceiro Mundo deve continuar explorada e subdesenvolvida. Ele tem certeza que nos cabe no máximo as migalhas que caem da mesa dos incensados. Acha que se falar em coisas como direitos e regulações é inaceitável. Entende que limites para ele devem ser aqueles estabelecidos pelas naves da sua empresa espacial.

É esse o tipo de pessoa que desrespeita a soberania brasileira. E que, mesmo assim, consegue o aplauso de alguns brasileiros desinformados ou mal-intencionados. Em 2020 ele dera apoio para a derrubada de Evo Morales, presidente eleito da Bolívia. Fez isso para garantir suprimento de lítio para as baterias dos carros elétricos que fabrica, em abundância e preços baixos. O deserto de Uyuni, naquele país, abriga 50% de todo o lítio existente no planeta. Criticado, disse com todas as letras: “daremos golpe onde quisermos”. É o que claramente pretende que aconteça também aqui no Brasil. O que, evidentemente, não se pode permitir.

11.04.2024

Xandão versus Musk

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O bônus de hoje é a música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, na voz de Emílio Santiago. Ela é considerada uma das maiores expressões do que se convencionou chamar de “samba-exaltação”. E foi escolhida para que nos lembremos que a nossa brasilidade precisa ser valorizada.