FILMES, GIBIS E OUTROS SONHOS
Na infância, muitas das nossas emoções estavam centradas no imenso poder que se tinha, a partir das idas ao cinema e das leituras de revistas de histórias em quadrinhos. Não existiam mais do que uns pouquíssimos canais de TV aberta e, especialmente para quem como eu residia em cidades interioranas muito pequenas, nem mesmo acesso regular a eles a gente tinha. A imaginação, desta forma, fazia uso de poucos recursos, se formos comparar com aqueles disponíveis na atualidade. Mas, mesmo assim, nos levava muito longe. Nos aventurávamos pela selva, ao lado de Tarzan; corríamos sério risco ao enfrentarmos o colossal império romano, com Ben-Hur – na versão de 1959 – ou Spartacus; se vivia a simplicidade de Mazzaropi, um caipira quase como nós mesmos éramos. Isso falando das telonas.
Nos gibis havia Flash Gordon, Fantasma, Príncipe Valente, Mandrake, Brucutu, uma série enorme dos dedicados ao faroeste, além do Recruta Zero, do Capitão Marvel e do Pimentinha, entre tantos outros, incluindo os personagens da Disney. Depois chegaram as revistinhas produzidas por Maurício de Souza; Zé Carioca, quando estúdio de fora investiu em personagem brasileiro; e a Turma do Pererê, uma criação do Ziraldo, com o Saci e seus parceiros tendo sido proibidos pelos militares durante a ditadura. E seguimos com Zorro; Popeye estimulando o consumo de espinafre; Flecha Ligeira, que trazia na sua capa uma recomendação de leitura para maiores de 13 anos; Riquinho, menino milionário que distribuía dinheiro; Gasparzinho, um fantasma que não assustava ninguém; e Brazinha, um diabinho boa praça. Esses três últimos de fato paradoxais.
Assim, quando se ganhava algumas moedas se podia escolher entre comprar um gibi ou ir a um matiné, muitas vezes com programa duplo, no cinema da cidade. Com um pouco de sorte se podia investir nos dois prazeres. A gente se imaginava como um dos heróis, vencendo inúmeros inimigos imaginários e conquistando todas as belas mocinhas com suas formas muito americanizadas – evidente que não nos dávamos conta disso na época. Se fosse no cinema, ainda havia um saco com balas para que se devorasse durante a sessão e desse dor de barriga depois dela, pelo exagero na dose.
Claro que existiam outras emoções naquela época, como a de ficar chuleando – aqui no Rio Grande do Sul isso não significa estar cosendo a borda de tecido para não desfilar, mas sim “ficar na torcida”, manter esperança – para ver se a tampinha do refrigerante vinha com um prêmio impresso. As latinhas ainda não haviam chegado e existia um círculo de cortiça servindo de vedação entre a tampa metálica e o vidro da garrafa, o recipiente que se encontrava nas vendas. Se bem que, de modo geral, se bebia mesmo era Ki-Suco ou Q-Refresco, muito mais baratos. Palitos de picolé também ofereciam a chance de se ganhar outro grátis. E nos chicletes Ping Pong e Ploc vinham figurinhas que se colecionavam ou que podiam ser postas na pele, uma transferência ridícula que imitava tatuagem. Pior que nem sempre ela se dava por completo, ficando grudado algo indecifrável, mas colorido o suficiente para chamar a atenção sobre a bobagem.
Crescemos, nossos heróis hoje são outros, assim como as expectativas também mudaram com o tempo. O verbo “chulear”, no entanto, esse continua nos fazendo companhia. Se torce por saúde; pelo emprego ser conquistado ou mantido; pelo palpite na aposta lotérica acabar premiado; pela reciprocidade no querer bem; por uma vida sem sobressaltos – sem assaltos também, considerando a violência que impera –; por títulos para o time pelo qual se torce; por alegrias maiores do que as tristezas, uma vez que ambas sempre acontecem. No âmbito coletivo também ficamos esperançando no sentido de que as coisas melhorem, que o mundo tenha soluções fáceis como aquelas que se via nas historietas e nos filmes, quando o bem inevitavelmente triunfava. Mas, todas e cada uma destas chuleadas têm preço muito maior do que um gibi, um ingresso de cinema e um pacote com balas. E, o que é pior, têm finais que raramente se mantêm felizes na sua totalidade.
03.12.1024

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