RECONHEÇAM OS OSSOS E A GENTE SEPULTA
Vou explicar as razões deste título absurdo, ao longo do texto. Mas, podem acreditar, ele está sendo absolutamente fiel à situação que foi criada no município de Alvorada, região metropolitana de Porto Alegre. As fortes chuvas que se abateram também sobre aquela cidade nos últimos dias causaram o desmoronamento de uma galeria no Cemitério Municipal São José Operário, o que deixou muitos túmulos destruídos e cadáveres expostos. Como não poderia deixar de ser feito, a administração pública interditou o local no domingo, 31 de março. Mesmo sem acesso, foi possível aos jornalistas que compareceram ao local mostrar imagens da estrutura danificada, de caixões quebrados e de uma lona que passou a cobrir os estragos. Funerárias e moradores das proximidades, entretanto, apontaram que os problemas eram bem maiores do que aquilo que se podia registrar à distância. E afirmaram que a chuva teria sido apenas a gota d’água, com o perdão do trocadilho. A falta de manutenção seria o principal motivo do problema.
As queixas contra o descaso no atendimento e no funcionamento das instalações se multiplicam. Desde 2020, por exemplo, os velórios nas capelas municipais só ocorrem durante o dia. Primeiro isso foi motivado pela pandemia, depois seguiu pela falta de pessoal e pela estrutura precária. Famílias de baixa renda têm sido obrigadas a pagar do seu bolso os custos em capelas particulares. Domingo, na notificação sobre o fechamento, foi dito que era devido a uma infestação de mosquitos. Apenas no turno seguinte é que disseram ter havido o desabamento. Mais inacreditável ainda é que o vice-prefeito de Alvorada, Valter Slayfer, esteve no local e não permitiram que ele tivesse acesso ao espaço, que é público, para fazer uma verificação. Depois disso, uma nota oficial da municipalidade informou que o fechamento seria mantido até a terça-feira, 2 de abril, para a manutenção devida.
Ao meio dia na data final do prazo, nada ainda havia sido resolvido. Assim, moradores da cidade, com familiares sepultados no local, ampliaram os seus protestos. Havia cadáveres insepultos. Então, um secretário municipal foi relatar providências, em programa de televisão, tendo se saído com uma pérola: dependiam que as pessoas identificassem os restos mortais de seus entes queridos, para que eles fossem então encaminhados para outros locais. Mas, queriam que fossem reconhecidos os ossos? Esse fêmur acho que era do meu pai; aquelas costelas têm tudo para ser as do meu irmão; essa mandíbula só pode ser a da minha esposa.
Tragédia não é chover demais. Tragédia é o descaso, acreditar que um local, por servir especialmente para quem mais precisa, não precise ele próprio de manutenção. Infortúnio é o enfrentado por tantas pessoas que talvez tenham passado por tantas dificuldades em vida e que, mesmo depois de mortas, não conseguem ter sossego.
O hábito dos humanos enterrarem seus mortos é muito antigo. Não se sabe ao certo desde quando isso é feito, mas já foram descobertos cemitérios que se estima existirem há pelo menos uns 60 mil anos. O costume pode ter surgido por uma razão simples, como a de evitar que corpos putrefatos atraíssem animais que eram muito perigosos para a sobrevivência do grupo. Outros pesquisadores, no entanto, dizem que isso começou, ao menos como algo sistemático, mais recentemente. Teria sido no período no qual, com o maior desenvolvimento do cérebro do homo sapiens, esse passou a entender questões como a morte e a pensar nela.
A expressão “velar os mortos”, por sua vez, vem da óbvia associação com velas mesmo. O costume deve ter começado lá pela Idade Média, época na qual não havia energia elétrica e era necessário passar ao menos uma noite em claro, como forma de garantir que a pessoa estava mesmo morta antes de ser enterrada. Depois de ser algo meramente utilitário, a luz trazida pelas velas ganhou simbolismo. Era uma forma de sacralizar o momento da despedida, iluminar o caminho de quem partia. E, aqui entre nós, de luzes também necessitamos todos nós, os ainda vivos. Seria tão bom, por exemplo, que elas clareassem decisões de quem tem o dever de cuidar das pessoas, enquanto estão entre nós e também depois de terem ido embora.
04.04.2024

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Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmenteNão é nada fácil escolher um ou mais bônus para que acompanhem assunto tão áspero quanto o tema cemitério. Então, ofereço aqui dois fragmentos de músicas que fazem parte da trilha sonora da excelente animação Viva: a Vida é Uma Festa, dos Estúdios Disney e Pixar, que recomendo seja vista por todos. São elas primeiro Lembre de Mim e depois Nunca Esquecerei Juanita. Essas versões brasileiras estão na voz de Leandro Luna, um ator, dublador e cantor paulistano. Por fim, o momento no qual Miguel canta para sua bisavó Coco, em uma última tentativa de fazer com que ela se lembre do pai, ou ele iria desaparecer para sempre, mesmo no mundo dos mortos.