O SAL DA VIDA, O SAL DA TERRA

A expressão “sal da vida” acompanha o homem desde a Antiguidade e sempre teve duas conotações. Na dimensão meramente terrena mostra o quanto a substância tem importância para nossa sobrevivência física. Mas, com muito maior significado, na dimensão religiosa evidencia a ligação do homem com o sagrado. Interessante é que em ambas as situações o sal é a preservação, aquilo que garante a existência sem a corrupção e a degradação física (com o uso em alimentos) ou ética (no entendimento da vida verdadeira). Moisés lembrava que a carne precisava ser salgada antes da oferta, o que pode ser conferido em Levítico 2:13. Do mesmo modo, dizia que podemos e devemos preparar o mundo para o Senhor, sendo cada um de nós como o “sal da terra”. Sendo objetivo, o sal – do mesmo modo que o são a boa vontade e a temperança – seria a proteção contra todo tipo de deterioração, desde que utilizado com a devida parcimônia.

Salgado é um sobrenome de origem ibérica. Na Espanha era tido como a indicação de um lugar, enquanto em Portugal designava um indivíduo ou pessoa que era graciosa, que tinha “sal”. Isso porque aquela substância, então bastante incomum e difícil de ser encontrada, era apreciada na Europa Medieval. Sebastião Salgado é um mineiro nascido em Aimorés, que se formou em Economia pela Universidade Federal do Espírito Santo e se tornou mundialmente famoso por seu trabalho como fotógrafo. Ele há muito é um verdadeiro ícone, com suas inconfundíveis fotos em preto e branco sempre mostrando questões humanitárias. Elas mostram quem não seria visto de outra forma: os pobres, os indígenas, os vitimados pela desigualdade social e pelas guerras.

Homem profundamente ligado às coisas da terra, para a qual foi e é um sal dadivoso, Sebastião Salgado contribuiu a vida toda para causas da ONU relacionadas à infância, aos refugiados e à saúde. Apoiador da Anistia Internacional e da ONG Médicos Sem Fronteiras, junto com sua esposa, a produtora gráfica e cinematográfica Lélia Wanick Salgado, trabalha em um projeto de reflorestamento comunitário em seu estado natal, o Instituto Terra. Nos últimos 25 anos o casal foi responsável pelo plantio de nada menos do que 2,5 milhões de árvores nativas de 290 espécies diferentes. Com isso, restauraram 1.500 acres de terra, fazendo ressurgir um pedaço da Mata Atlântica. Mais de 170 espécies de aves já foram identificadas na área. E centenas de nascentes estão em processo de recuperação. Hoje em dia é possível realizar visitas guiadas ao local, que recebe escolas e grupos de interessados em questões ambientais. Isso ganhou mais de uma vez grande destaque na mídia internacional. Aqui dentro de nosso país, no entanto, não teve a mesma repercussão que merece.

As fotografias de Salgado têm como característica muito forte o uso da luz e da escuridão, em contrastes intensos. As expressões faciais são outro ponto de destaque, com rostos graves, marcados com os sulcos que o tempo cria. Toda a sua obra pode ser chamada de documental e não raras vezes foram fruto de anos de dedicação a um tema. Um bom exemplo é a série “Trabalhos Rurais”, à qual se dedicou por seis anos, entre 1986 e 1992, retratando formas desta atividade em todo o mundo. No total ele tem cinco livros publicados com elas, sempre mantendo o caráter de denúncia e demonstrando uma coerente luta em prol do resgate da dignidade humana.

Um acervo de 24 quadros com fotos de Salgado foi novamente colocado em uma das salas do Ministério das Relações Exteriores, depois de passarem escondidas no subsolo do Itamaraty, durante o último governo, por ordem presidencial e do ex-chanceler Ernesto Araújo. Do mesmo modo, 15 outras de suas obras voltavam a ser expostas na sede da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a FUNAI, depois que o seu então presidente, Marcelo Xavier, as mandou retirar em 2020. São duas oportunidades que retornam para que se veja fragmentos de realidade que alguns preferem manter escondidas. Esquecidas mesmo, se isso for possível. Mas o sal felizmente segue resistindo contra a degradação. E a corrupção jamais conseguirá de fato impedir a volta da vida.

20.12.2023

Indígenas na Amazônia, fotografados por Sebastião Salgado

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O bônus de hoje é duplo. Temos primeiro a música de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, Sal da Terra. A interpretação é de Simone, ao vivo. Depois temos a Missa da Terra Sem Males, de Dom Pedro Casaldáliga (um bispo católico nascido espanhol e naturalizado brasileiro, que faleceu em 2020), Pedro Tierra e Martin Coplas.

BANDEIRA CONTRA O RACISMO

Ela tem 85 anos e sua história a tornou um verdadeiro ícone no carnaval carioca. Porta-bandeira da minha querida Portela, por seu bailado de extrema elegância e leveza, ficou conhecida como Cisne da Passarela. Com uma estreia bem precoce, aos 13 anos, ela já surpreendia pela altivez com a qual carregava a bandeira das agremiações. Coloquei no plural porque também brilhou com outras cores além do azul e branco da maior entre todas as campeãs – a Portela chegou 21 vezes ao título – com as quais conquistou três vezes o Estandarte de Ouro, entre 1977 e 1979. O tetra veio em 1989, com a Tradição. Mais recentemente, em 2014, foi homenageada pela Porto da Pedra como uma das Majestades do Samba, tema do desfile daquele ano.

Uma mulher negra, poderosa e digna. Essa sempre foi e ainda é Vilma Nascimento. Em setembro do ano passado, recebeu uma Moção de Reconhecimento e Louvor da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. E agora em 20 de novembro de 2023, Dia da Consciência Negra, foi uma das pessoas homenageadas na Câmara dos Deputados, em Brasília. Teve a honra de abrir a exposição “O Pensamento Negro no Brasil”, onde foi feito um painel inteiro dedicado a ela. Seu deslocamento para a Capital Federal, portanto, tinha tudo para ser de fato marcante na vida dela. E na verdade foi, mas não apenas do modo que ela merecia.

Na hora de voltar para casa, em uma loja no Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, onde entrara porque uma filha que a acompanhava decidiu pela compra de um chocolate, Vilma foi barrada por uma segurança. Essa determinou que a idosa tirasse todos os seus pertences da bolsa que carregava, após acusação de furto. E foi o que ela fez, apesar de muito constrangida, comprovando que nada havia dentro da bolsa que não fosse seu. A filha filmou toda a ação da profissional da Dufry, tendo depois postado o vídeo constrangedor nas redes sociais. A enorme repercussão fez com que a empresa, segundo disse, “afastasse a colaboradora” – é importante frisar que o termo “demitida” não foi utilizado. Mas é muito difícil acreditar que sua ação tenha sido espontânea e não cumprisse protocolos e normas internas.

As lojas da Dufry estão em praticamente todos os aeroportos do Brasil, podendo estar localizadas em ambiente de acesso restrito a quem seja passageiro (Duty Free) ou, como é o caso de alguns, sendo disponíveis para todo o público que lá compareça (Dufry Shopping). Seu fundador foi o bilionário norte-americano Charles Feeney, que no ano de 2020 tinha uma fortuna avaliada em algo perto de oito bilhões de dólares. Hoje ela está presente em 63 países, com cerca de 2.200 lojas em 200 aeroportos e também em portos marítimos, destinos de férias e até em navios de cruzeiro.

Vilma parou de desfilar em 1982. Entretanto, serviu de inspiração para que outras mulheres da família seguissem seus passos. A filha Danielle se tornou porta-bandeira da União da Ilha do Governador. A neta Camyla é a segunda porta-bandeira da Portela. E a bisneta Clarice, com apenas 10 anos em 2022, estreou como porta-bandeira mirim da Mangueira. Até em respeito à matriarca, familiares já informaram que irão recorrer à justiça, em função da atitude racista da empresa. “Eu não comprei nada, como é que vou ter de pagar”, chega a dizer uma constrangida Vilma, que mesmo assim atendeu a ordem de esvaziar a bolsa. É relevante dizer que outras pessoas estavam na loja, todas brancas, e nenhuma outra foi revistada.

O neto de Vilma, Bernard Nascimento, relata que o emocional da avó está abalado desde o fato, que ocorreu no dia 21. A glicose dela ficou mais alta e um choro tem aflorado em alguns momentos, apesar de todo o cuidado e carinho que estão tendo com ela. A Portela divulgou uma nota afirmando que “a luta por uma sociedade mais justa e humana passa pelo combate ao racismo”. E repudiou o constrangimento da “sambista de destaque, que traz na pele a marca da nossa ancestralidade”. Muitas organizações, outras escolas de samba e políticos também se somaram aos protestos.

Agora, se em lugar público e vendo que está sendo gravada uma pessoa não titubeia em demonstrar seu racismo – a empresa está longe de ser isenta, importante acrescentar –, imaginemos então o que não ocorre em lugares mais “discretos” e em ocasiões sem testemunhas. E não faltará, neste caso da Vilma, quem se manifeste dizendo ser exagero, que ter cuidado com patrimônio é um direito dos lojistas, afirmando ser mimimi e outras amenizações previsíveis a mais. Agora, nenhuma dessas pessoas terá explicações plausíveis para o cuidado seletivo, para uma atenção direcionada, para a presunção do furto. Isso porque é comum para os negros a acusação sem materialidade, como neste caso. Enfim, é preciso que todos nós portemos uma bandeira contra o racismo. Porque, como é muito bem colocado em frase que é quase um clichê, mas que merece ser repetida, não basta não ser racista: temos que ser antirracistas.

28.11.2023

P.S.: Não deixe de “rolar” o texto do blog, porque hoje temos logo após as chamadas para doações e antes do bônus aquelas informações adicionais como propostas para reflexão.

Vilma Nascimento durante homenagem recebida na Câmara dos Deputados, antes da vergonha no aeroporto de Brasília

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ALGUMAS COISAS PARA SE PENSAR (11)

  1. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), indicou o PIX pessoal de um assessor direto seu, para ser o destino de doações (sem fiscalização pública) que supostamente seriam destinadas depois para vítimas das enchentes que assolaram a cidade. Esse procedimento é considerado ilegal por especialistas em direito público. Não bastasse isso, o vereador Roberto Robaina (PSOL) descobriu que o tal servidor, de nome José Francisco Vieira de Moura, havia sido condenado a dois anos de prisão e pagamento de multa, anos atrás, pelo furto de vale-refeição do Banrisul. Não se esqueçam de que teremos eleições municipais em 2024.
  2. A Confederação Israelita de Brasil (Conib) entrou com ação judicial contra o jornalista Breno Altman – que é filho do também jornalista e advogado Max Altman, um polonês de origem judaica já falecido – em virtude de suas manifestações favoráveis à Palestina. Antes já obtivera na justiça paulista decisão que o obrigava a apagar postagens que a haviam desagradado. A censura parece não ter sido suficiente, havendo a necessidade de buscar silenciamento mais duradouro. Lembrei agora da frase conhecida de que numa guerra a primeira vítima é a verdade. A citação é atribuída a Ésquilo, sem que se tenha certeza disso.

O bônus de hoje é a música Stand Up, composição de Joshuah Brian Campbell e Cynthia Erivo, que a canta neste clipe, produzido por Will Wells e Gabe Fox-Peck.