ÉTICA E HUMANIDADE

Eu vi esta semana um vídeo curto, no qual se acompanha por alguns minutos um automóvel andando em zigue-zague por uma estrada não identificada. As imagens foram feitas a partir de uma câmara instalada internamente, na parte frontal de outro veículo, que seguia atrás do primeiro. Visivelmente, quem o conduzia lutava contra o sono, embriaguez ou outro fator qualquer que estava impedindo uma ação mais segura para si e para quem mais trafegava no momento. O motorista do segundo carro comenta o fato, mas não tenta, por exemplo, alertar o outro com buzina ou sinal luminoso. Apenas segue atrás, em distância razoável, documentando tudo. Até que, após invadir mais uma vez a pista contrária, agora de modo mais extremo, o primeiro se choca frontalmente com um caminhão. Pelo que se vê dos destroços, a colisão deve ter sido fatal.

Este fato conduz para uma avaliação ética da situação. O acidente não poderia ter sido evitado, se ao invés de gravar e narrar a cena, tivesse o segundo motorista tentado evitar o desfecho trágico? Até quanto esta tão contemporânea ânsia de sermos testemunhas não está desumanizando nossas decisões? Esta é uma preocupação que em geral acompanhava os jornalistas profissionais – apesar de não todos, obviamente – e que não se repete entre os chamados “geradores de conteúdo”. Uma vida não pode, em circunstância alguma, valer menos do que um clic, uma curtida, a viralização de um conteúdo. O dilema entre os verbos observar e intervir não pode custar uma existência.

Na década de 1940 consta que o famoso fotojornalista José Medeiros, ao cumprir uma pauta para a revista O Cruzeiro, optou de forma odiosa pela sua carreira, pela manutenção e ampliação de sua fama. Era no Rio de Janeiro, sobre a construção civil. Em determinado momento e local, ele percebeu que a estrutura de um andaime de madeira estava cedendo, que os operários nele estavam correndo sério risco. Mas, não disse nada: apenas preparou sua câmera e esperou pelo desfecho que era mais do que provável. Registrou a queda. A foto publicada tornou-se famosa e gerou um debate muito grande na época. Talvez devesse ter rendido também um processo, uma vez que parece claro ter havido uma espécie de omissão de socorro, mesmo antes de sua necessidade.

Para que não se fique apenas no exemplo brasileiro, em 1975, na cidade de Boston (Massachusetts), o fotógrafo Stanley Forman documentou o desabamento de uma escada de incêndio, onde estavam uma mulher e uma criança. Diana Bryant, de 19 anos, e sua afilhada Tiare Jones, de apenas dois, aguardavam resgate, na altura do quinto andar de prédio em chamas. A fotografia, intitulada “Fire Escape Collapse” (O Colapso da Escada de Incêndio) foi agraciada com o Prêmio Pulitzer. E dúvidas foram levantadas sobre a atuação do profissional, apesar do quase consenso de que não havia nesse caso tempo de elas terem sido ajudadas.

Outro caso clássico é a fotografia de uma criança faminta, curvada pela fraqueza na direção de um chão de terra, sendo observada por um urubu que espera em breve ter ele próprio o que comer. Foi tirada em março de 1993 por Kevin Carter, no vilarejo de Ayod, no Sudão do Sul. Essa foi outra que rendeu um Pulitzer, depois de ter sido publicada no The New York Times. O fotógrafo assegurou ter ajudado, depois de registrar a cena, o que não foi possível confirmar.

Um repórter deve ser um espectador neutro ou primeiro ser um cidadão? E isso não vale para todos nós, quando os dias atuais transformam os mais simples e ocasionais transeuntes em coletores de registros e de dados, em olhos e ouvidos de terceiros? A mística de que o fotógrafo deva ser invisível e não deva interferir na realidade, de modo algum,  para não “corrompê-la”, merece ser considerada em todos os casos? Tudo isso me voltou à mente, depois que me dei conta de que talvez a família daquele ou daquela motorista do vídeo tivesse tido a chance de passar um Natal mais feliz do que aquele que certamente teve.

27.12.2025

Fire Escape Collapse – Stanley Forman

O bônus de hoje é clipe da música O Bem, de Arlindo Cruz.

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