SETENTA ATÉ OS SETENTA

Eu aceito ser chamado de idoso, até porque se não aceitasse não faria a menor diferença: continuaria sendo um. Claro que espero que ainda leve um bom tempo, que demorem a ter coragem de me dizerem isso assim, olhando direto nos meus olhos, mesmo aqueles que já pensem desta maneira. Afirmo isso porque agora ainda não me sinto exatamente merecedor da qualificação. Mas, ofensivo é ser chamado de velho. Ser idoso é algo inexorável, que chega até nós contra a nossa vontade, mas atendendo o desejo e as ordens do tempo. Essas coisas desagradáveis como os calendários e os relógios. A degeneração das células é algo inevitável, implacável. Ser velho, no entanto, vem de uma aparente degeneração não das células, mas do espírito. Ser velho é perder a jovialidade e contra isso prometo resistir muito mais.

Contados a partir de agora, faltam exatamente 1.500 dias para que eu chegue aos 70 anos de idade. Essas sete décadas soam como um limite, um divisor de águas, vendo de hoje. Claro que as coisas estão mudando para melhor, que a expectativa de vida está aumentando. Em 1950 ela era de 50,9 anos aqui no Brasil. Dez anos depois, em 1960, estava em 52,5 anos. Eu nasci entre elas, em 1957. Agora está em 76,2 segundo estimativas da ONU e do Banco Mundial – por que será que um banco se preocupa em fazer esses cálculos? –, devendo chegar a 88,2 em 2100. O que não me resolve em nada saber, porque não estarei mais por aqui, talvez não sendo mais sequer lembrado por quem quer que seja. Agora, a título de comparação, os japoneses já vivem em média mais de oito décadas, com exatos 84,6. Mas eu não nasci por lá: sou brasileiro com muito orgulho.

Enquanto aquele aniversário de 30 de novembro de 2027 não chega, resolvi fazer uma lista de desejos – ou de esperanças, talvez – com coisas que eu gostaria de fazer, dentro do possível, entre o dia de amanhã e aquela data que espero seja bem festiva. Simbolicamente, estabeleci o número de 70 eventos. Quero ver quantos consigo tornar realidade e, passado esse tempo, considerando a hipótese de que eu ainda esteja por aqui, contarei o que aconteceu e o que não passou de um sonho.

(01) Ler ao menos 50 livros especialmente selecionados – a lista está sendo elaborada –, o que não é muito difícil neste prazo, mas exige a retomada de uma disciplina que anda bastante frouxa. (02) Escrever e publicar ao menos um livro, pulando pretensiosamente de leitor para a categoria de escritor. (03) Ainda sobre textos, não esmorecer muito no meu ritmo atual, para completar no mínimo mil crônicas aqui no blog. (04) Dar início a um podcast. (05) Abrir uma rádio web. (06) Lançar ao mar uma garrafa com mensagem. (07) Plantar dez árvores nativas em locais onde seja grande a possibilidade de que cresçam. (08) Visitar ao menos cinco praias paradisíacas e pouco conhecidas. (09) Assistir, pleno de despreocupação, o nascer e o pôr do sol de um mesmo dia em cada uma delas. (10) Passar um dia inteiro num Spa, com direito a todas aquelas mordomias que eles oferecem. (11) Pagar um preço obsceno por um jantar, sem me arrepender devido à qualidade. (12) Conhecer todas as capitais do Nordeste do Brasil. (13) Provar algum prato exótico, daqueles que causam repugnância na maior parte das pessoas. (14) Pintar um quadro. (15) Superar as limitações impostas pela minha coluna para conseguir correr ao menos uma prova curtinha, de três quilômetros. (16) Manter, pelo menos por dois anos inteiros, a periodicidade de exercícios físicos quatro vezes por semana. (17) Voltar a estudar, de preferência conseguindo vaga em faculdade para graduação ou pós em História. (18) Voltar a tirar muitas fotografias, como fazia no passado, em época que sequer havia a facilidade do digital. (19) Ver todos os filmes dirigidos por Alfred Hitchcock. (20) Completar 250 jogos do Grêmio assistidos na Arena. (21) Voltar a proferir uma única palestra que seja, em um Centro Espírita. (22) Rever alguns colegas da faculdade ou mesmo de séries do Ensino Médio, com os quais perdi contato. (23) Ver um desfile da Portela, no Rio de Janeiro. (24) Participar de uma pescaria, relembrando a infância. (25) Voltar a empinar uma pipa, pelo mesmo motivo. (26) Organizar um encontro entre todos ou a imensa maioria dos descendentes dos avós maternos Ulysses e Dorinha. (27) Doar mais cem livros para bibliotecas populares. Até hoje já entreguei cerca de 300. (28) Comprar um bom telescópio. (29) Montar algumas vezes o meu autorama, que continua existindo, mas que está na caixa há tempo demais. (30) Aprender a dobrar um desses lençóis de baixo, que têm elástico nas bordas, o que eu acho impossível de ser feito. (31) Chamar um filho da puta qualquer de filho da puta, em alto e bom som. (32) Voltar a um retiro budista, uma experiência que tive no passado. (33) Surpreender uma criança de rua com uma doação realmente gorda. (34) Quebrar uma taça após brindar, em ocasião especial. (35) Comemorar ao menos mais um título nacional ou internacional do Grêmio, o que obviamente não depende de mim. (36) Conviver com uma neta ou neto, torcendo que a criança esteja com uma idade que possa permitir que ela ou ele depois lembre disso. Outra coisa que não depende de mim. (37) Conhecer ao menos duas entre essas quatro capitais: Praga, Roma, Atenas e Havana. (38) Dormir uma noite em uma rede. (39) Voar num avião pequeno, monomotor. (40) Atravessar pelo menos cinco Estados brasileiros dirigindo. (41) Conhecer e provar umas cinco frutas diferentes. Pode ser em forma de suco. (42) Ficar uns três dias acampado em algum lugar SEM internet. (43) Ser confundido com outra pessoa e não desfazer o engano – ainda mais se esse outro alguém for especial ou famoso. (44) Conhecer todos os 81 bairros de Porto Alegre – a maioria de nós viaja, mas não conhece o próprio quintal. (45) Seguir com mais rigor a dieta que a nutricionista recomenda, mesmo estando satisfatória a minha atual obediência. (46) Voltar a andar de bicicleta. (47) Tentar escrever uma letra de música, que certamente não será sertaneja, muito menos gospel. (48) Fazer um piquenique com a família. (49) Aprender a cozinhar três ou quatro pratos especiais, para impressionar na cozinha. (50) Estar em um grupo que faça uma serenata mesmo sem tocar ou cantar nada – para não assustar a pessoa que estiver sendo homenageada. (51) Fazer um curso de primeiros socorros e torcer para nunca ter que usar os conhecimentos adquiridos. (52) Ver pelo menos uns dez shows musicais, de artistas que eu admire e dos quais seja fã. (53) Viver uma vez situação que me permita dizer “você sabe com quem está falando?”, mesmo com a certeza de que a pessoa não tem mesmo motivo algum para saber. (54) Participar de pelo menos um concurso literário, com uma ou mais crônicas ou contos. (55) Visitar uma praia de nudismo – isso é bem complicado e irá causar controvérsia. (56) Voltar ao Museu do Prado e ao Reina Sofia, para passar horas e horas vendo e revendo as maravilhas que eles guardam. (57) Visitar um local que as pessoas considerem “mal-assombrado”. (58) Trabalhar como comentarista ou repórter de campo, ainda que sendo um substituto em equipe de rádio esportes, numa partida qualquer de futebol. (59) Dedicar uma semana inteira aos cafés e livrarias de Buenos Aires. (60) Comer uma barra de chocolate, daqueles que estão na relação dos dez melhores do mundo. (61) Comprar uma camisa do Atlético de Madrid, que não seja feia como a lançada em 2022/2023. (62) Visitar duas ou três vezes minha terra natal, a cidade de Bom Jesus, para realimentar as memórias da minha infância. (63) Voltar nas oportunidades possíveis a Torres, de preferência para ao menos uma temporada mais longa. (64) Ter um domínio maior das redes sociais, para poder fazer uso apropriado delas na divulgação do meu trabalho.  (65) Sair uma vez de férias sem nada planejado, apenas seguindo o rumo do coração, num roteiro intuitivo. (66) Receber uma massagem tântrica realmente profissional. (67) Brincar com e como uma criança, com criatividade e se permitindo aquilo que nós, tolos adultos, convencionamos chamar de ridículo. (68) Não perder mais ninguém que eu ame – pronto, outra vez algo sobre o que não tenho nenhum controle. (69) Aprender, aprender e aprender sempre, não importa o quê. Essa eu sei que é uma meta totalmente subjetiva, mas subjetividade é algo muito relevante. (70) Pedir todas as desculpas que deveria ter pedido ao longo da vida, para quem isso ainda puder ser feito.

Quando metade desse prazo tiver se ido, faço uma aferição para que as metas e sonhos sejam reajustados. Conferir quais foram cumpridas, quais talvez nunca sejam. E no final outra, conforme já escrevi lá atrás, antes da lista. Tudo isso, evidente, sem deixar de me permitir ter novos desejos. O que significa estar vivo.

23.10.2023

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O bônus de hoje é duplo, com as músicas Envelhecer (Arnaldo Antunes) e El Tiempo Pasa (Mercedes Sosa).

O TEMPO NEM SEMPRE FAZ BEM

Envelhecer não é fácil, podem acreditar. Eu que o diga. Se não todos os dias, asseguro que vez por outra essa percepção me atinge e afeta. Em geral são implacáveis coisas como os espelhos e as lembranças, essas quando estão recheadas de saudade. Você se dá conta do que não está mais conseguindo fazer, de que nem todo mundo que você ama continua do seu lado, de que seus anos futuros com certeza serão muito menores em número do que aqueles que já passaram. E isso tudo dói. Com a dor maior sendo produto da nossa absoluta impotência diante da passagem do tempo.

Agora, existem pessoas que conseguem envelhecer muito melhor do que outras. Há algumas até que, quando atingem idades mais avançadas, se tornam versões melhores de si mesmas. Entretanto, como tudo na vida, também temos aquelas que quando envelhecem você tem a impressão que são outras, no sentido de que desdizem tudo aquilo que sempre disseram, negam tudo aquilo em que sempre acreditaram. São esses dois tipos os lados opostos de uma moeda, completamente antagônicos. E temos a terceira via – algo que nas eleições não tivemos –, que são aquelas do meio termo, sendo o que sempre foram. Isso, dependendo do ponto de vista do qual se observa, pode ser ótimo ou péssimo. Acho que estou nesse último grupo, mesmo mantendo uma leve esperança de ainda ter como integrar o primeiro.

Há quem diga que envelhecer é uma arte. Nunca soube tocar nenhum instrumento; não pinto nem parede, muito menos quadros – se bem que nunca tentei –; só interpreto bem o papel de Solon, uma vez que faço isso há décadas; dançando sou um desastre absoluto; e tenho tentado escrever, até agora sem sucesso que garanta subsistência. Deste modo, música, pintura, teatro e dança estou fora; literatura, talvez ainda ocorra um milagre. Mas esse tal de envelhecimento, não há escola de arte que nos ensine. Tenho me apegado apenas à ideia de que a criatividade independe da idade cronológica; que, contrariando todas as evidências anteriores, o cérebro, uma vez mantido ativo, pode seguir caminho oposto ao restante do corpo, não decaindo como se vai o restante da nossa estrutura física.

José Saramago despontou como escritor apenas aos 60 anos, quando lançou Memorial do Convento, em 1982. Passados 16 anos, em 1998, ganhou o Nobel de Literatura. Charles Darwin foi um tanto mais precoce, uma vez que seu A Origem das Espécies veio em 1859, aos 50 anos. Clarice Lispector escrevia desde quando tinha 23, mas sua obra mais famosa chegou aos 56: A Hora da Estrela, publicada em 1977. Victor Hugo foi outro, que publicava desde os 29 anos, mas Os Miseráveis, a sua obra prima, foi levada ao público quando ele tinha 60. J.R.R. Tolkien modernizou a literatura de fantasia ao lançar a trilogia O Senhor dos Anéis, entre 1954 e 1955, quando tinha 62 anos.

Leonardo Da Vinci concluiu a Mona Lisa com 54 anos e Michelangelo terminou O Juízo Final aos 66. A obra Ponte Sobre Uma Lagoa de Lírios de Água foi feita por Monet, com 59 anos de idade, enquanto Pablo Picasso nos premiou com Guernica, aos 56. Cito aqui apenas quatro grandes mestres e suas obras-primas. Existem centenas de outros exemplos. Aos 80 anos Jessica Tandy ganhou o Oscar de Melhor Atriz por seu papel em Driving Miss Daisy, enquanto entre os homens Christopher Plummer tinha 82 quando foi agraciado com a premiação do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, por Beginners. No Brasil, Fernanda Montenegro parece representar com ainda maior perfeição, conforme o tempo passa.

Cássia Kiss, em 1989, foi a primeira mulher a aparecer com seios à mostra na história da televisão brasileira, ao estrelar uma campanha surpreendente e de absoluto sucesso, sobre a prevenção ao câncer de mama. Ela ensinava a fazer o autoexame, mostrando ao vivo como deveria ser feito. Em 1997 admitiu, juntamente com outras famosas e algumas anônimas, em capa da revista Veja, que já havia feito aborto. Ao longo da vida foi hippie, fumou maconha e construiu uma carreira sólida como uma das melhores atrizes brasileiras. Seria normal o abandono desses dois primeiros hábitos, mas ela foi muito além disso. Durante anos se disse espírita – o que não a absolveria de nada – e agora, mais recentemente, aderiu a um catolicismo radical, virando ainda uma defensora ferrenha da extrema-direita. A ponto de fazer discursos homofóbicos e ir se ajoelhar no meio da rua, para rezar ao lado de manifestantes anti-democráticos, pedindo a volta da ditadura, entre outras barbaridades.

Há pessoas que de fato envelhecem como um bom vinho, melhorando. Outras têm como destino virar vinagre. Aliás, esse produto, quando feito a partir do vinho, resulta de se acrescentar um agente microbiano que faz com que sofra um processo de oxidação. Agora me caiu a ficha: talvez a introdução de determinadas ideias faça com que cérebros despreparados também se oxidem. Arte e convívio com pessoas inteligentes podem ser os antídotos necessários.

06.11.2022

O bônus musical duplo de hoje tem primeiro Envelhecer, com Arnaldo Antunes; depois trazendo Paciência, de Lenine.

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