QUANDO SE SOLTA O CAVALO

A história é mais ou menos a seguinte: um cavalo amarrado estava tentando se soltar, sem conseguir. Veio um demônio e fez isso por ele. Libertado, o animal faminto invadiu e começou a comer plantações de fazendeiros das proximidades. Assim, um deles o matou a tiros. O dono do animal ficou indignado, mesmo que antes não cuidasse assim tão bem da sua propriedade. Em uma discussão, matou o vizinho que havia eliminado o cavalo. Por isso, a mulher do fazendeiro morto revidou e matou o dono do cavalo. E acabou morta pelo filho dele, um rapazola que acreditou que precisava mostrar que era homem. O que terminou causando cólera na vizinhança, que executou o rapaz e botou fogo na fazenda da família. Foi quando um espírito que tudo observara (e quase sempre tem um fazendo tal coisa), perguntou ao demônio: – Afinal, por que você fez tudo isso? Ao que ele prontamente respondeu: – Eu apenas soltei o cavalo.

A moral da história é que a maldade está nos nossos corações. Para que ela aflore, basta que um gatilho simples seja acionado. Depois dele, nós mesmos nos encarregamos de fazer o resto. Por isso uma mera fake news faz tanto estrago. Não é apenas pelo conteúdo dela, geralmente algo grotesco, muitas vezes tão absurdo que beira o risível. Ela apenas dispara nossas predisposições. Essa gente toda, que nos últimos anos nos surpreendeu com sua desumanidade e ignorância, não fez isso por ter mudado. Continuou toda sendo o que sempre foi: apenas se aproveitou da chance recebida para externar isso tudo, sem aquele risco anterior de uma desaprovação generalizada. Porque outras pessoas, na mesma situação delas, legitimam sua postura agora assumida. Estava dada a permissão para que a barragem se rompesse, ao melhor estilo Mariana e Brumadinho.

Citei fake news e me voltou à mente um episódio pior do que triste, que ocorreu no litoral paulista, dez anos atrás. Fabiane Maria de Jesus foi linchada no dia 3 de maio de 2014. Isso ocorreu depois de mensagens falsas terem circulado nas redes sociais, alertando a vizinhança sobre ser ela uma suposta praticante de bruxaria, que havia sequestrado uma criança para a prática de seus rituais. Foi no Guarujá, onde um bom número de pessoas se entendeu no direito de deter, julgar, condenar e executar a mulher. Muito machucada, ela sobreviveu ainda por dois dias, antes de vir a falecer. No ano passado, essa história verdadeira inspirou a ficção, com a novela Travessia, escrita por Glória Perez, tendo repetido a situação. Só o final foi diferente, com a personagem Brisa, vivida por Lucy Alves, tendo mais sorte e sobrevivido. Não sei se por coincidência ou por iniciativa da autora, a telenovela terminou exatamente na data do nono ano da morte de Fabiane: 5 de maio.

Esse crime bárbaro ocorreu quando se davam os primeiros passos em um experimento social que buscava conduzir as pessoas para reações desejadas por manipuladores. Gente que se especializou em soltar o cavalo, em circunstâncias perfeitamente estudadas, com objetivos muito claros. Pessoas e organizações que, de posse de recursos tecnológicos, fazendo uso de algoritmos que permitem individualizar os discursos de tal forma que cada um que os recebe imediatamente se identifica, passaram a moldar comportamentos, a criar convicções e difundir as certezas mais incertas. Isso é uma ferramenta poderosa para a publicidade, mas muito perigosa para a propaganda. A primeira vende produtos, a segunda compra consciências e sequer paga por elas.

Serviram para deflagrar movimentos sociais, como as “primaveras” ocorridas em países árabes. Fizeram com que as profundezas do Reino Unido o retirassem da União Europeia. Foram decisivos na eleição de Donald Trump. Aqui no Brasil isso foi testado no movimento levado para as ruas em 2013. Depois garantiram, por exemplo, que mulheres, gays e negros votassem em um candidato extremamente machista, homofóbico e racista. Fizeram com que gente que no passado sempre vacinou os seus filhos desacreditasse da ciência. Com que também utilizassem, sem a menor lógica, remédio contra vermes para os mais variados fins, menos aquele ao qual ele se destina.

Pior é que esse pessoal continua por aí. As ferramentas continuam a sua disposição, sem o controle devido. As redes sociais permanecem sendo o esgoto por onde escorre o que mais de imundo, desumano e fétido eles são capazes de produzir. São a faca sempre disposta a cortar a corda que prende o bicho homem.

Precisamos prender nossos cavalos – talvez isso seja o nosso verniz de civilização. Mas, é evidente que não se deve de modo algum maltratar os animais. Que eles recebam comida, água e a liberdade necessária dentro das propriedades. O que é um modo simbólico de dizer que se precisa nutrir nossa capacidade de raciocínio e nosso discernimento. A propriedade é a mente e o livre pensar é mais do que necessário: trata-se de algo essencial. Assim como valorizar a vida em comum, o convívio. Quem quer antes soltar o cavalo é quem deseja que você não pense, não tenha pontos de vista, seja tão radical quanto quem tem armas para depois puxar os gatilhos.

29.03.2024

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O bônus de hoje é a música Um Só, com Gabriel o Pensador e Maneva.

TIROS NOS PRÓPRIOS PÉS

Eu optei por não escrever nada aqui, no calor do momento. Naqueles dias não faltaram textos opinativos e achei que seria melhor esperar a poeira baixar, não ser apenas mais um, refletir um tanto mais sobre o que colocar – e nem é mais no papel, como se dizia, mas na tela do computador mesmo. Sem dúvida, o país inteiro estava aguardando com ansiedade que começassem os julgamentos dos responsáveis pelos atos golpistas de 8 de janeiro. Mesmo sabendo que isso iria iniciar com as arraias-miúdas, os que se arriscaram sendo “bucha de canhão”. Aqueles que foram doutrinados com fake news, disparadas por operadores de redes de ódio; os que agiram em Brasília incentivados por pastores, que usaram as estruturas de suas igrejas para os arregimentar; que para lá se deslocaram, patrocinados por empresários; e que foram acolhidos por militares, junto aos quartéis.

Quando não deu certo o plano urdido, que era conseguir que o governo eleito decretasse uma esperada GLO, iniciais de Garantia da Lei e da Ordem, dando plenos poderes para que as Forças Armadas viessem enfrentar o caos instaurado, ruiu o castelo de cartas. O Governo Lula foi muito mais inteligente do que eles esperavam. Seus ministros e assessores foram eficientes no sentido de encontrar de imediato outras saídas e, com isso, o que estes baderneiros conseguiram foi acumular uma série de provas inequívocas contra eles próprios. Tiros desferidos contra os próprios pés. Cada vídeo se vangloriando, cada mensagem de WhatsApp trocada com dicas do que fazer no local ou relato do que estavam fazendo, tudo contribuiu para derrubar previamente todas as desculpas furadas que tentaram inventar depois.

“Eu estava passando pela Praça dos Três Poderes na hora, apenas isso”. “Só entrei no Palácio do Planalto para tirar outras pessoas de lá”. “Eu sentei na cadeira do ministro, sim. Mas apenas porque encontrei ela do lado de fora do prédio”. “Peguei algumas coisinhas, mas imaginava que era permitido, como souvenir” (centenas de itens de decoração e até computadores foram levados). “Juro que nem sabia o que estava acontecendo”. Logo após o vandalismo planejado e executado pelas hordas bolsonaristas, foram presas 2.151 pessoas. Nos dias seguintes, acabaram sendo relaxadas grande parte destas prisões.

Em 20 de janeiro 354 destas pessoas tiveram suas prisões em flagrante transformadas em preventivas, quando não há prazo para acabar. Outros 885 casos ainda eram analisados, enquanto 220 mais foram liberados mediante medidas cautelares, como uso de tornozeleiras eletrônicas. Ou seja, naquela data o total de detidos estava em 1.459. Eram gigantescas as evidências que precisavam ser examinadas, mas estas apontavam com toda a clareza para os crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, ameaça, perseguição, incitação ao crime, depredação de patrimônio público, entre outras possibilidades. Aconteceram, por exemplo, agressões contra os poucos servidores públicos que ousaram enfrentar os invasores.

A investigação continuou correndo seu curso, apesar de extremamente difícil e complexa, pelo volume e pelo ineditismo, sendo os indiciamentos apenas a consequência natural. Assim como os julgamentos que agora se iniciaram. A extrema-direita, mantendo a cartilha de abandonar quem não lhe serve mais, “esqueceu” de auxiliar seu contingente de ataque. Sem essa de recolher feridos nos campos de batalha. Então, as redes de ódio fizeram apenas um alarde inicial, jurando que havia exagero nas prisões e que a maioria dos detidos era composta por idosos e pessoas com crianças. Até mesmo certos “líderes religiosos” embarcaram nisso, reverberando a fake news. Depois, o mundo virtual foi aos poucos silenciando. Os pentecostais usam a situação apenas para que os fiéis se fanatizem ainda mais, diante da “injustiça que está sendo praticada contra os emissários do Senhor, que apenas estavam buscando evitar que o Brasil caísse nas mãos do Demônio”. Entretanto, não se sabe de nenhuma parcela do dízimo que tenha sido destinada aos detidos. Do mesmo modo, os empresários vão pagar advogados – bons e caros, certamente – apenas para eles próprios, se e quando forem alcançados pela Justiça. E os militares, que se mostraram divididos, seguem nos quartéis. Aliás, de onde nunca deveriam sair para bancar os “moderadores” que constitucionalmente não são.

Isso posto, restou ao gado aceitar o abate, torcendo apenas para que os anos de prisão fossem modestos como sua ação não foi. Os advogados que os defendem, em boa parte, são voluntários que anteviram nisso a oportunidade de uma projeção profissional, mesmo que talvez ainda não estivessem preparados para tanto. E o que se viu no Supremo Tribunal Federal foi um circo de horrores, com a atuação dos advogados virando memes. Os primeiros três julgamentos ocorreram em meados de setembro, seguindo um rito pré-determinado. No início o ministro relator, Alexandre de Moraes, leu seu relatório; depois o ministro revisor apresentou o seu comentário e ressalvas; a Procuradoria-Geral da República (PGR), autora da acusação, fez uso da palavra; relator e revisor foram os primeiros a votar; os demais votaram em ordem de sua antiguidade, de Cristiano Zanin até Gilmar Mendes; a presidente do tribunal, Rosa Weber, encerrou a votação; e tudo terminou com o resultado anunciado. Todos foram condenados.

Mais cinco réus começaram a ser julgados essa semana, agora em plenário virtual. A Polícia Federal encontrou material genético – aliás, havia sangue, urina e fezes em inúmeros locais dos três prédios – que os coloca no local dos crimes, além de portarem rojões, balas de borracha, munições de gás lacrimogêneo, uma faca e dois canivetes, com o que ingressaram na Praça dos Três Poderes para uma “manifestação pacífica”. Agora isso ocorre em plenário virtual. No domingo, 1º de outubro, já havia sido formada maioria de votos para a condenação dos cinco.

Bolsonaro se elegeu em 2018 com seu partido de então tendo o número 17. Seus seguidores depositaram – a hipótese de lavagem de dinheiro também está sendo investigada – R$ 17 milhões em PIX para “colaborar” com ele, depois que saiu da presidência. E agora o Supremo Tribunal Federal condenou a penas de até 17 anos de prisão os primeiros julgados pelos atos golpistas. Tenho nítida impressão que, pelo menos desde setembro, essa dezena foi “rebaixada” nas bancas do Jogo do Bicho.

03.10.2023

P.S.: Não se deve esquecer de outros acontecimentos, associados à invasão e que a antecederam. Citando apenas os de Brasília, tivemos a queima de três automóveis e cinco ônibus, em noite de terror; uma inacreditável tentativa de invasão da sede da Polícia Federal; e ainda a colocação de bomba no eixo traseiro de um caminhão-tanque que estava estacionado aguardando momento de descarregar combustível no aeroporto.

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Os “patriotas” destruíram inúmeras salas e gabinetes invadidos

O bônus de hoje é uma paródia da música Teresinha, de Chico Buarque de Holanda, composta entre 1977 e 1978. Ela integrava sua peça teatral Ópera do Malandro, tendo sido posteriormente gravada por Maria Bethânia. No vídeo abaixo, toda a criatividade do músico Edu Krieger, com AdvoGADOS. Canta com ele Natália Voss.