VARGAS E A CARTA-TESTAMENTO
Exatos 70 anos atrás, em 24 de agosto de 1954, o então presidente do Brasil, Getúlio Dornelles Vargas, decidiu por conta própria abandonar a vida para entrar na história, conforme registrado na carta-testamento que deixou aos brasileiros. O ato extremo teria acontecido no seu quarto no Palácio do Catete, que abrigava simultaneamente a sede do Governo e a residência presidencial. Chegava ao final a trajetória de um dos maiores e mais controversos políticos da nossa história e se iniciava a fase na qual o homem foi substituído pelo mito – um verdadeiro.
Não fazia muito que amanhecera quando Vargas sucumbiu de vez à pressão que contra ele exercia a oposição. Terminava de forma trágica a vida de um homem que alterou profundamente o país, que deixou um legado que deu novos rumos para a nação brasileira. Gaúcho de São Borja, foi quem consolidou direitos trabalhistas, com o estabelecimento de folgas e férias, a criação do salário mínimo e outras medidas. Foi também neste período que se instituiu uma banca eleitoral e que as mulheres conquistaram o direito de votar. Fora esses aspectos sociais, na economia, por exemplo, foi ele que deu início ao processo de industrialização do nosso país – em 1930 a produção industrial era 10% do nosso PIB, tendo chegado em 1955 a 30%.
Mesmo tendo governado entre 1937 e 1945 sob uma ditadura conhecida como Estado Novo, conseguiu ser admirado. Apesar da forte repressão exercida contra quem identificava como comunistas, além de centralizar em excesso o poder, de ter estabelecido uma máquina de repressão e censura, tinha o respeito e o apoio inconteste de boa parte da classe trabalhadora. De tal sorte que voltou ao poder pela força do voto, em 1951. Mas, esta relevância incomodava muita gente e, a partir disso, se viu cercado por uma estrutura extremamente feroz, patrocinada pela elite econômica, que o via como uma forte ameaça para seus interesses nem todos confessáveis.
Entretanto, Vargas ainda foi o responsável por realizações que deram ao país uma autonomia jamais vista antes, com a ampliação da capacidade de investimento e de crescimento econômico. Ele criou grandes estatais, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (atual BNDES), o Banco do Nordeste e também a Petrobrás. Iniciou ainda o processo de criação da Eletrobrás, que não conseguiu concluir antes da sua morte e coube a Jânio Quadros fazer isso, em 1961.
Bombardeado por uma imprensa brutal e reconhecidamente vendida, liderada em especial por Carlos Lacerda, Vargas vivia sob sucessivas crises políticas, fossem elas reais ou criadas. Quando no dia 5 de agosto de 1954 um suposto atentado contra este jornalista resultou na morte de um major da Força Aérea Brasileira, eclodiu a crise derradeira. Suspeitas de que o governo estaria envolvido no fato municiaram opositores para que então exigissem a renúncia do presidente. Interesses internacionais, em especial dos Estados Unidos, que perdiam terreno na exploração de recursos e de serviços em nosso território, garantiam o financiamento desta tentativa de golpe.
Encurralado e impossibilitado de reagir, Vargas tira a própria vida. Ou ao menos essa é a história oficial, que muita gente jamais aceitou como sendo a verdade. Teorias da conspiração à parte, às 8h30 daquela manhã fatídica, funcionários do Catete ouviram o barulho de um tiro. Os primeiros que chegam aos aposentos do presidente o encontram sobre a cama, agonizando. O buraco aberto pela bala está pouco acima de um monograma com as letras GV bordadas próximo ao bolso do seu pijama de seda listrado nas cores cinza, branco e bordô. Ao seu lado, repousa um revólver calibre 38, com cabo de madrepérola.
Sabedora do fato, a população sai às ruas em inúmeras cidades. De início, movida pela incredulidade. Logo depois, pela revolta que eclodiu tão ou mais forte do que a tristeza. No Rio de Janeiro, manifestantes depredaram a sede do jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Em Porto Alegre, empresas que tinham identificação com os EUA foram também atacadas, como a sede do National City Bank. Em função do seu nome, nem mesmo o famoso cabaré American Boite e a Importadora Americana escaparam, mesmo sendo brasileiríssimos.
Ainda na capital gaúcha, as máquinas de escrever, mesas e cadeiras do Diário de Notícias foram arremessadas pelas janelas, antes da sua sede ser incendiada. Os estúdios da Farroupilha e da Difusora resistiram ao primeiro ataque com barricadas. Sucumbiram no segundo. Com o prédio que sediava ambas as emissoras em chamas, o radialista Gerson Borges pulou do segundo andar e fraturou a coluna. As sedes de partidos políticos também foram postas abaixo. O Exército só entrou em ação depois que o consulado dos EUA também foi invadido, à tarde. Três dos manifestantes foram mortos pelos militares.
Em São Paulo foi necessária a intervenção de sindicatos para acalmar os trabalhadores exaltados, que também ameaçavam realizar depredações. Em Salvador, populares incendiaram o palanque onde, no dia anterior, a oposição pedira a renúncia de Vargas. Em Belo Horizonte o comércio foi fechado e os bondes pararam. Concentrados no centro da cidade, um grande grupo de trabalhadores invadiu a sede do Instituto Brasil-Estados Unidos e outro a sede do consulado daquele país, quebrando móveis e danificando arquivos. Um trabalhador mineiro foi morto. No velório do presidente, no Rio de Janeiro, mais de cem mil pessoas enfrentaram filas para a despedida.
O início disso tudo se deu cerca de uma hora depois da confirmação da morte quando, por telefone, o então ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, leu para a Rádio Nacional o teor de uma carta-testamento encontrada na mesa de cabeceira de Vargas. O texto é contundente. No trecho final ele coloca: “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Esse documento merece, por sua força, ser considerado entre os mais importantes que temos. Foi escrito por um homem de verdade e numa época em que ser de fato patriota ia muito além do uso de redes sociais e camisetas verde-amarelas. Por isso é tão importante lembrar e honrar o nome de Getúlio Vargas.
24.08.2024

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Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmenteO bônus de hoje começa com o áudio da leitura da Carta-Testamento de Getúlio Vargas, feita pelo jornalista e radialista Paulo Otaran, que iniciou a sua carreira na Rádio Eldorado, de Santa Catarina. Depois, temos a música Doutor Getúlio, de Chico Buarque e Edu Lobo, na voz de Simone.