SOMOS PREDADORES

Acompanhei uma discussão pela internet, na qual alguém questionava a razão pela qual os humanos eram tão mais fracos e vulneráveis do que outras espécies. Essa pessoa afirmava que não teríamos condições de competir com outros animais pela nossa sobrevivência, em um ambiente naturalmente hostil. Nisso foi contestada, com o argumento de que nós já estivemos nessa condição, em um passado longínquo, e não apenas se pode sobreviver como também evoluir como espécie.

Analisando de um modo isolado, sem dúvida um indivíduo não poderia mesmo sobreviver em um meio hostil. Talvez ainda mais agora do que no passado, uma vez que a “civilização” nos afastou muito do nosso estágio mais primário. Seria muito pior do que aquele estranho programa que se vê na televisão, os Pelados & Largados, ou algo parecido. Isso porque não existiria o pessoal da produção por perto, o acesso fácil a soros antiofídicos, por exemplo, se fosse necessário usar. O mesmo valeria, acredito, para um pequeno núcleo familiar. Imaginem um casal com seu bebê, todos sem roupas, sem nada de apoio, no meio de algum trecho intocado que ainda tenha sobrado da Amazônia – vejam o quanto eu sou otimista, achando que isso ainda existe. Seria preciso descobrir abrigo, agasalho, alimento e, ao mesmo tempo, evitar ser presa de algum animal. Não seria nada fácil escapar de ferroadas, picadas, arranhões causados por espinhos, das chuvas, do calor… de alguma onça-pintada que estivesse também lutando para não ser extinta.

Mas, em grupos numerosos, ainda mais quando fomos aprendendo a fazer uso de ferramentas e de armas, isso foi possível de algum modo, ou não estaríamos aqui para contar a história. Sobrevivemos à medida em que fomos nos tornando capazes de nos defender de agressores e passamos a atacar outros animais, buscando maior volume de alimento. O homem aprendeu a não apenas coletar frutas como também a caçar e pescar, muito antes de deixar de ser nômade e dominar técnicas de agricultura. Repito, entretanto, que para se chegar a todas essas conquistas evolutivas, o primordial foi aprender que juntos somos muito mais fortes. Algo que muitos animais também sabem, seja isso resultado de simples instinto ou não.

Nem falo da organização das abelhas em colmeias, ou da estrutura que têm os formigueiros, ambas sociedades complexas. Cito, por exemplo, o modo como os lobos se deslocam quando a matilha precisa mudar de território. Vão em fila, mas não de modo aleatório: há toda uma estratégia. Na frente vão os velhos e doentes, porque assim o ritmo do andar fica apropriado para eles, além de ser respeitada toda a sua experiência e capacidade de guiar os demais. Logo atrás seguem alguns que sejam jovens e fortes, de tal modo que poderão defender os primeiros de algum ataque. Depois desses vem o grupo mais numeroso, composto pelas fêmeas e seus filhotes. Estando praticamente no meio, têm proteção tanto da dianteira quanto da retaguarda, isso porque são seguidos de outro “time” daqueles mais fortes. E, por último e um pouco mais afastado, está o líder. A posição lhe permite uma visão geral do grupo e também se torna garantia de que nenhum lobo seja deixado para trás. Ou seja, simbolicamente é algo assim como aquela frase “ninguém larga a mão de ninguém”.

Agora, se os recursos físicos dos humanos são de fato mais restritos, a vantagem competitiva veio atrás de outras capacidades, criando técnicas (pormenores práticos) e posteriormente tecnologia (processos especiais). No primeiro caso, isso não se restringe a nós. Basta citarmos a maioria dos pássaros, que constroem seus ninhos, e o joão-de-barro que faz isso com maestria, misturando terra úmida, esterco e palha, em paredes de até quatro centímetros e com a entrada sempre voltada para o lado onde não costuma chover. Ou os incríveis castores, roedores semiaquáticos naturais da América do Norte – não existem aqui no Brasil – que fazem barragens muito melhores que aquelas de Mariana e Brumadinho.

Outra condição que para nós se tornou uma diferença essencial foi a linguagem. Com ela o que se aprendeu foi mais facilmente ensinado, acumulando saberes e experiências. O que se tornou fundamental para que nos tornássemos predadores ao invés de presas. Entretanto, parece que nesse último aspecto a gente exagerou um pouco, de tal forma que nos tornamos talvez a única espécie que mata também quando não está com fome ou medo. E, pior ainda, sem demonstrar a mínima compaixão, com requintes de crueldade e muitas vezes fazendo isso por prazer.

Os homens matam uns aos outros no varejo e no atacado. Fazem isso por discussões banais, como as de trânsito; por dinheiro; e por alegadas razões passionais. Guerreiam por territórios e subsistência. E conseguem ser frios o suficiente para exterminar populações inteiras, em ações genocidas “justificadas” por diferenças como raça, religião e ideologia. Esses genocídios aconteceram, ao longo da história, em grande número. Apesar de para muitos ser citado apenas os massacres de nazistas alemães contra os judeus – matavam também ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais, além de pobres em geral –, há muitos outros tristes exemplos, como os do Congo, quando 10 milhões de congoleses foram mortos pelos belgas; da Índia, onde 20 milhões de indianos foram exterminados por ingleses; na China, com 25 milhões de chineses mortos por japoneses; na Armênia e em Ruanda; além do uso de bombas atômicas dos EUA contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Ou o caso da situação em curso na Faixa de Gaza, que vem sendo denunciada.

Em um dos exemplos tirados do reino animal e que dei acima, está o dos “mamíferos canídeos”. Impossível, ao vermos as barbáries praticadas pelos seres ditos humanos, deixar de citar a frase do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679): “O homem é o lobo do homem”. Trata-se obviamente de uma metáfora, com a qual ele afirmava com razão sermos nós capazes de grandes atrocidades. A citação é ótima, mas entendo que é uma enorme injustiça para com o animal.

22.02.2024

Foto de Sebastião Salgado, na cobertura do deslocamento forçado e genocídio em Ruanda (acervo Médicos Sem Fronteiras)

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O bônus de hoje é Rosa de Hiroshima, versão musicada de um poema de Vinícius de Moraes, feita por Gerson Conrad. Trata-se de uma alusão aos efeitos da bomba atômica lançada sobre aquela cidade japonesa pelos EUA, em 1945. A versão foi oficialmente lançada ao vivo em show no Maracanãzinho, em 1974, pelos Secos e Molhados. Depois, Ney Matogrosso e também Arnaldo Antunes também a gravaram. No clipe temos uma interpretação singela de Si e Dagô. Em 2009 a revista Rolling Stone de nosso país considerou essa como a música 69 entre as cem maiores de todos os tempos, entre as brasileiras.

LIVROS NÃO LIDOS

Sim, eu tenho livros que comprei e nunca os li inteiros. E esse sempre foi um fato que me incomodava, causava um certo desconforto íntimo, como se eu estivesse traindo ao mesmo tempo as minhas finanças e os escritores, que dedicaram tempo, criatividade e competência para que eles fossem escritos. E isso durou até dias atrás, quando uma pessoa amiga me enviou uma destas tantas mensagens de WhatsApp – que também não leio todas, mas por motivos diferentes – , permitindo que eu tivesse uma nova visão sobre essa minha característica.

Era um texto com comportamento semelhante atribuído a Umberto Eco (1932-2016), o brilhante filósofo, linguista e escritor italiano que foi diretor da Escola Superior de Ciências Humanas, na Universidade de Bolonha. Ele, além de ser o autor de obras como O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault e O Fascismo Eterno – cito aqui apenas três entre os seus 56 romances e ensaios –, era também proprietário de uma biblioteca com mais de 50 mil volumes. Segundo ele, é tolice pensar que se precisa ler todos os livros que se compra, da mesma forma que criticar aqueles que compram mais livros do que conseguem ler. No seu entender, existem coisas na vida que se precisa ter em abundância, mesmo que usemos apenas uma pequena porção.

Eco compara os livros a remédios que se tem disponíveis em casa, preventivamente. Quando se precisa, se tem alguma dor, por exemplo, basta recorrer a eles. Acrescenta que se pode e deve fazer o mesmo com os livros, aos quais há como apelar em certos momentos. Tive que concordar e não apenas por interesse, para me sentir melhor, mas por entender esse pensamento lógico. Livros nos aplacam outros tipos de dores e todas as categorias de dúvidas. Nos fazem companhia na solidão e nos abrem horizontes para viagens imaginárias e convívios inimagináveis. Podemos abrir um deles para degustar de uma vez só, de ponta a ponta, como também apreciar aos poucos, indo e voltando em capítulos, lendo páginas aleatórias, buscando citações. Livros não são fugas da realidade, representando na verdade a sua multiplicação.

O pensador italiano foi além na sua apreciação sobre o tema. E disse que aqueles que compram apenas um livro e depois se livram dele após a leitura estão aplicando a mentalidade do simples consumidor. Encaram a obra como um mero produto, semelhante a qualquer outro que seja igualmente descartável. Mas, diz ele, quem ama livros sabe que eles são tudo, menos mercadoria. Acolho a tese de que para esses últimos o livro é um parceiro leal, que precisa ter essa lealdade retribuída, inclusive em termos de conservação. Eu cuido dos meus de tal forma que possam parecer jamais terem sido abertos, mesmo que folhados inúmeras vezes. Gosto de ver todos eles sempre com o aspecto de novo, apesar que aquele cheiro bom que eles trazem consigo das livrarias se perde com o tempo.

Pessoalmente, quando compro um livro eu me sinto como se estivesse conhecendo um novo amigo. E daqueles com os quais a gente simpatiza no primeiro instante, de quem leva a impressão de que já se conhecia anteriormente e a certeza de que esse encontro renderá ótimos momentos. Com os livros, assim como com as pessoas de quem se gosta, não raras vezes o convívio é menos frequente do que se gostaria. Mas, cada reencontro que acontece se reveste de emoções e de luzes trazidas pelas lembranças. O que, no fundo mesmo, representa o que de real existe e importa.

06.12.2024

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O bônus de hoje é a música Livros, de Caetano Veloso.