UMA ENORME HIPOCRISIA

Viralizou nos últimos dias um vídeo no qual o pastor André Valadão, que é líder da Igreja Batista da Lagoinha, uma megaestrutura com sede em Belo Horizonte, Minas Gerais, sugere que os fiéis não permitam que seus filhos cursem ensino superior. Segundo ele, isso poderia “acabar com a vida deles”, uma vez que jovens que vão para uma faculdade voltam com diploma, mas “renegando a Deus”. No caso de filhas mulheres, ele foi ainda mais contundente ao insinuar que elas se transformam em “doidas, rodadas, vagabundas”. Isso tudo foi dito durante um culto e teve imediata repercussão nas redes sociais.

Na continuidade da sua pregação, defendendo que não valeria a pena arriscar a salvação, André Valadão sugeriu que seria melhor se eles fossem “vender picolés na garagem” do que sonhar com uma vida melhor, uma vez que essa é ilusória. Interessante é que ele falou tudo isso com um relógio no pulso que foi avaliado pela página “Outfit do Templo”, que fez análise das imagens, em nada menos do que R$ 196 mil. Trata-se de um Rolex autêntico, que certamente custaria o lucro de picolés de uma vida toda, considerando ainda clientela fiel e verão todos os meses de todos os anos.

O nome disso, para ser direto e objetivo, é hipocrisia. Algo que se pode encontrar definido em dicionários como o ato de fingir crenças, virtudes, sentimentos e ideias que a pessoa na verdade não possui. Ou seja, a propensão de cobrar dos outros atitudes e comportamentos que não se siga; padrões éticos que a própria pessoa não adota ou extrapola. Uma atuação, um fingimento, uma deformação moral. Esse termo, em bom português, tem origem no latim hypocrisis, que significa representação, atuação artística. A questão é que esse significado extrapolou em muito o “fingimento” de atores, estando hoje em dia mais próximo do cinismo, da dissimulação.

François de La Rochefoucauld, um moralista francês que viveu no Século XVII, conseguiu ser, com uma das suas tantas frases lapidares, mordaz e preciso ao mesmo tempo, quando afirmou que “a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”. Mas, pergunto eu, a virtude não deveria ser uma das buscas primordiais da religiosidade?

A questão pode e deve ser levantada, quando se percebe que essa contradição de André Valadão está longe de ser a única, assim como seguramente não foi a primeira. A mesma página que citei acima – Outfit do Templo –, que foi criada em 2023, fez um levantamento e encontrou dezenas de casos semelhantes. Ela voltou a ser destaque agora com a suspensão, por parte da Receita Federal, de um ato do ex-presidente Jair Bolsonaro que favorecia descaradamente interesses fiscais de entidades e de líderes religiosos. E comprovou o que um simples olhar mais atento poderia com facilidade perceber: a ostentação de pastores e de celebridades gospel, que não se constrangem em usar peças de grifes famosas em cultos e em eventos, mesmo que diante de uma massa de fiéis que os sustentem com dízimos e ofertas que muitas vezes lhes são enorme sacrifício.

Lembremos que a Bíblia, no Novo Testamento, está repleta de citações condenando os hipócritas, que são representados de modo especial pelos fariseus. Uma passagem, como exemplo, está no Evangelho de Mateus, em seu capítulo 23, versículos 13 a 15: “Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós.”

O desapego como forma de salvação só vale para os frequentadores, os “crentes”, não para quem prega. O perfil, que destaca o mundo da “moda evangélica”, foi criado por um homem de 31 anos que passou a sofrer ameaças. Mas, já ultrapassa 70 mil seguidores. Quem vê as fotos, todas reais e sem retoques, com os valores dos bens postos ao lado, passa a ter certeza de que a Teologia da Prosperidade (*) é fato inquestionável. Valendo apenas para os escolhidos, claro.

Outro detalhe é que praticamente todos esses pastores e celebridades têm uma fixação por relógios caros. Talvez para que fiquem atentos ao tempo que lhes resta para aproveitar ao máximo sua existência terrena. Edir Macedo aparece com um Patek Philippe Geneve no pulso, que custa a bagatela de R$ 398.052,00. Silas Malafaia, um coitado de tão modesto, usa um Rolex bem mais barato: apenas R$ 94.500,00. Isso ainda é mais do que gastou Valdemiro Santigo, com os R$ 43.035,00 do seu relógio Breitling. O próprio André Valadão possui mais de um e vez por outra ostenta seu Cartier, de “apenas” R$ 52.200,00.

Esse último, ao que parece, é o que dá mais valor à imagem pessoal, à elegância exorbitante. Intercala o uso de blusas e camisas da Dior, que parecem ser uma coleção numerosa, com preço médio de R$ 6 mil cada uma. Dias atrás foi visto com uma jaqueta Gucci de R$ 8.563,00. Sua esposa, Cassi, costuma desfilar com modelos de bolsas da Louis Vuitton que custam mais de R$ 30 mil cada, como a que ornamentava seu braço na mais recente viagem do casal a Paris.

Agora, para finalizar, ofereço aos leitores a cereja do bolo: logo após sugerir que os fiéis de sua igreja afastem seus “rebentos” dos cursos superiores e os levem a optar por atividades mais simples – e em geral com menor remuneração –, André Valadão levou seus filhos para visitar a Universidade de Harvard, uma das melhores do mundo. Para eles, ao que parece, o pastor deseja um futuro diferente daquele que prega para os mais pobres. Santa hipocrisia!

27.06.2024

(*) A doutrina conhecida popularmente como “Teologia da Prosperidade” é uma corrente que ensina que qualquer sofrimento de quem é cristão se trata de uma indicação inquestionável de sua falta de fé. Então, somente quem de fato se mantém “fiel”, frequentando o templo, ouvindo e seguindo o pastor, assim como pagando religiosamente seu dízimo, pode alcançar a plenitude em termos de saúde física, espiritual e emocional, além da prosperidade material.

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O bônus de hoje é Ignorância, música plena de ironia, com Bea Duarte (Beatriz Duarte Leme), paulista de São Bernardo do Campo.

QUEM MANDOU MATAR MARIELLE

O fato ocorreu mais de 2.200 dias atrás. Uma vereadora do Rio de Janeiro voltava para casa, depois de uma reunião de trabalho. Era daquelas raras pessoas que realmente honram o cargo para o qual são eleitas. Levava a sério a sua função, defendendo a população da cidade como um todo, não apenas os eleitores que nela depositaram confiança e voto. No automóvel com ela estavam seu motorista e uma assistente. Então, um outro veículo emparelha com o deles e do seu interior é disparada uma rajada de tiros. Naquele instante, Marielle Franco e Anderson Gomes perdiam a vida. E a política brasileira perdia uma pessoa honesta, com carreira que se revelava merecedora de apostas em um futuro brilhante.

Aparentemente se dava mais uma vitória da criminalidade. Das milícias, dos bandidos que tomam conta muito especialmente do Rio de Janeiro, mas de outras tantas cidades brasileiras também. Gente que conseguiu, ao longo dos últimos anos, inclusive se imiscuir na política e colocar inúmeros representantes seus em postos que jamais poderíamos sequer imaginar, dentro de Executivos, Legislativos e de instituições diversas, alcançando absurdamente até mesmo a segurança pública e a justiça. Hoje, esses grupos dominam inclusive igrejas pentecostais, que usam para lavar dinheiro sujo. Entretanto, felizmente desta vez não foi bem assim. Demorou, demorou muito mesmo, mas as coisas estão sendo afinal esclarecidas.

Uma coincidência mais do que apropriada fez com que a prisão de três suspeitos de envolvimento no crime, dois mandantes e um terceiro envolvido cuja função principal era acobertar tudo, se deu justamente no Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas, instituído pela ONU. A escolha da data foi para coincidir com o assassinato do arcebispo salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, em 24 de março de 1980. A decisão foi tomada durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 2010.

A investigação chegou aos nomes do deputado federal Chiquinho Brazão, do União Brasil; seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado; e de Rivaldo Barbosa, delegado que era Chefe de Polícia quando do crime contra Marielle e Anderson. E a Polícia Federal fez isso com um trabalho sério, mesmo que tanto tempo tenha se passado desde o fato, com inúmeras provas eliminadas e várias pistas falsas propositalmente plantadas. Não por nada cinco delegados foram sendo os responsáveis pela investigação, na Polícia Civil carioca, numa sucessão absurda de trocas que se davam sempre que algum deles se aproximava da verdade.

Se por um lado a família Brazão, que é uma das que possuem profundas ligações com milícias, estava se sentindo prejudicada em seus interesses pela atuação parlamentar de Marielle, o que aponta as razões para seu envolvimento, a maior surpresa foi descobrirem a participação umbilical de Rivaldo Barbosa com o caso. Demonstrando que havia cuidadosa premeditação para o cometimento do crime, ele foi nomeado Chefe de Polícia na véspera – não se trata de força de expressão, tendo sido um dia antes mesmo – dos assassinatos, pelo então interventor militar na segurança pública, o general Braga Netto. O mesmo que concorreu às eleições de 2022 como vice na chapa de Jair Bolsonaro e que está envolvido com a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O papel do delegado, além de ser elemento ativo na elaboração do plano, seria se responsabilizar pelo travamento de qualquer investigação.

O cinismo de Rivaldo Barbosa foi tanto que ele pessoalmente tratou de consolar a família de Marielle, depois de sua morte, assegurando que haveria total dedicação no sentido de solucionar o crime. Gravou vídeos e tirou fotos ao lado da mãe e da irmã da vereadora, ocasiões nas quais fez tal promessa. Ao mesmo tempo, foram sendo infrutíferas todas as tentativas de federalizar as investigações, durante o governo anterior. Assim, ao longo do tempo persistiam as mesmas dúvidas de sempre: quem matou, quem mandou matar e por que nunca nada era elucidado. Essas foram todas esclarecidas agora, o que não significa que outras ramificações não devam ser seguidas com olhar atento. Se sabe que os irmãos Brazão e Rivaldo mandaram, que os 13 tiros foram disparados mesmo por Ronnie Lessa e que Élcio de Queiroz dirigia o automóvel Cobalt na noite do crime. Esses dois últimos estão presos há bom tempo, sendo que suas delações foram essenciais para a solução.

Sem existir mais sigilo sobre o caso, se soube de detalhes interessantes quanto ao modo como tudo aconteceu. Um exemplo é que os criminosos infiltraram um elemento de sua confiança no PSOL, ainda um ano antes, com o objetivo de acompanhar todos os passos dados pela vereadora e determinar exatamente a sua rotina. Outro ainda, entre tantos, é que no ponto exato onde o carro de Marielle foi alvo da emboscada, a câmera de vigilância estava “inoperante”, a única daquele trecho todo. Bota acaso nisso! As armas, que foram jogadas em alto mar, assim como o veículo, que foi desmontado, completam o cuidadoso roteiro.

Apenas não sejamos ingênuos em acreditar que nada mais exista por baixo desses panos sujos. Com a tampa do bueiro aberta, se torna muito provável que mais e mais ratos saiam. E, caso não saiam, cabe à sociedade tratar de retirar cada um deles deste esgoto. Não podemos nos iludir, esquecendo uma possibilidade que nada tem de improvável ou sequer remota. Talvez ainda reste uma dúvida, uma pergunta para se formular, sonhando que uma resposta definitiva venha e consiga nos tranquilizar de vez: teria alguém mandado os mandantes mandarem matar Marielle?

26.03.2024

O delegado Rivaldo Barbosa (à esquerda), um dos mandantes do crime, tentando consolar a mãe de Marielle

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São bônus, na postagem de hoje, primeiro um clipe gravado por petistas do Espírito Santo, quando da passagem dos 40 anos do partido, com a canção Sorriso de Marielle, que compuseram e apresentam no clipe feito em homenagem à vereadora do PSOL. Depois temos uma música bem curtinha, de Jorge Mautner, que leva o nome de uma das vítimas desse crime bárbaro que começa a ser esclarecido: Marielle Franco. E fechamos o primeiro bônus tríplice da história do Virtualidades, com Hoje e Sempre, de Paco, com ele próprio e Luíza Lara.