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A ESTUPIDEZ NÃO É DE HOJE

A sociedade brasileira vem aperfeiçoando, nos últimos anos, sua enorme capacidade de produzir notícias absurdas. Ao associar interesse pessoal com razões profissionais, diariamente consumo temas sérios e assuntos relevantes que terminam acompanhados de coisas inacreditáveis. Não há criatividade literária que supere certas narrativas que nos apresentam como verdade. Compilar isso poderia resultar em vários volumes, sem um grande esforço, o que daria respaldo para algumas teorias em voga que afirmam estarmos ficando intelectualmente mais limitados. Entretanto, a iniciativa não seria inédita, mesmo que interessante.

O jornalista, cronista e escritor Sérgio Marcus Rangel Porto (1923-1968), que usava o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, já havia feito isso ao registrar uma série de notícias tiradas da imprensa nos anos da ditadura militar. Tudo foi publicado em livros que criaram o impagável “Febeapá – Festival de Besteira que Assola o País”. De certo modo isso mostra que a estupidez não é de hoje. Então, se estamos mesmo emburrecendo, será terrível. Isso porque já se estaria partindo de uma base lamentável.

Nos relatos que Ponte Preta nos oferece, entremeados com observações muito bem humoradas, estão pérolas como as seguintes: em 1965 houve a estreia da peça clássica Electra, de Sófocles, no Theatro Municipal de São Paulo. Agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), especializado em tortura e desaparecimento de pessoas, compareceram ao local com ordem de prisão contra o autor, por subversão. O detalhe é que ele falecera 406 anos antes do nascimento de Cristo. Para que isso não recaia apenas sobre os paulistanos, em Porto Alegre um tal coronel Bermudes, da Secretaria de Segurança Pública, fez o mesmo. Acusando de deboche e desrespeito todo o elenco de uma peça apresentada no antigo Teatro Leopoldina, exigiu a presença em seu gabinete do grupo e do autor. Esse último, de nome Georges Feydeau, desobedeceu a ordem pelo fato de ter falecido em Paris, no ano de 1921.

Também na capital gaúcha, o delegado titular da Delegacia de Costumes mandou retirar das livrarias todos os exemplares de livros que ele próprio considerava pornográficos. Um dos apreendidos foi “O amante de Lady Chatterley”, do escritor inglês D. H. Lawrence. Depois, quando soube que esse era britânico, mandou devolver dizendo aos seus homens que se preocupava com a pornografia nacional, apenas. Outros dois delegados entraram na lista, por Minas Gerais. Em Mariana o titular proibiu casais de sentarem juntos para namorar na praça da cidade. E determinou que moças só poderiam ir ao cinema com autorização escrita pelos pais. Em Belo Horizonte, colega seu distribuiu espiões nas arquibancadas dos estádios porque, por ordem sua, quem disparasse mais do que três palavrões ao torcer por seu time, seria preso.

Ainda no âmbito futebolístico, um time da Alemanha Oriental veio jogar algumas partidas amistosas no Brasil. O Itamaraty distribuiu nota na qual avisava que os alemães só poderiam entrar em campo se não houvesse a prevista manifestação de cunho político. Essa era tocar os hinos dos dois países, antes de cada disputa. Citando pernas de mulheres, José Monteiro de Castro, secretário de Segurança de Minas Gerais, proibiu que estas desfilassem com elas de fora no Carnaval. A justificativa foi “evitar que apareçam críticas às Forças Armadas”, o que ninguém entendeu. E no Nordeste, Epitácio Cafeteira, o prefeito de São Luiz do Maranhão, proibiu que as pessoas usassem máscaras na mesma festa de Momo.

Em Brasília, o diretor de Suprimento – sei lá que cargo é esse e qual seria seu substituto hoje em dia – impediu que se vendesse vodca no Distrito Federal, “para combater o comunismo”. Na cidade de Ouro Preto (MG) o delegado local proibiu serenatas. E em Petrópolis (RJ) o prefeito baixou portaria ditando normas para uso de roupas em banhos de mar. Detalhe: a cidade dele é serrana, estando uns 70 km do Oceano Atlântico. No Ceará, depois de um período de seca, autoridades do Estado enviaram circular perguntando como estava a situação, depois da passagem do equinócio (início formal das estações primavera e outono). Um prefeito respondeu: “Dr. Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar, será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festa”.

Ainda no Nordeste, a imprensa publicou que retirantes estavam comendo formigas, para não morrer de fome. A reação do Governo Militar foi recorrer a nutrólogos e divulgar as qualidades nutritivas das saúvas, com a quantidade de proteína que poderiam fornecer. E o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem tratou de ser incluído na lista desses casos emblemáticos, ao enviar nada menos do que seis ofícios ao juiz Whitaker da Cunha, o chamando de “meritríssimo”. Então, ele perdeu de vez a paciência e respondeu que “meritíssimo” vem de mérito, enquanto que “meritríssimo” viria de coisa sem mérito algum.

Em Fortaleza um colunista político, não aguentando mais todas as bandalheiras cometidas pelos vereadores, em nome da “liberdade”, escreveu que metade deles era composta por ladrões. Ameaçado não apenas de processo, o colunista no dia seguinte afirmou que “havia na Câmara uma metade que não era composta por ladrões”. Aceitaram a sua retratação. E em Niterói (RJ) a feira do livro instalada na Praça Martim Afonso foi tomada por policiais que apreenderam exemplares da encíclica papal “Mater et magistra”, que também seria subversiva – êta adjetivo que servia para quase tudo.

Existem centenas de outros casos registrados naquela época cinzenta. Mas, em tempos mais recentes, houve quem se esforçasse para igualar os absurdos. Não vamos esquecer, por exemplo, que os governos de Porto Alegre e de São Paulo já pretenderam taxar quem faz malabares nas sinaleiras e quem distribui comida de graça para os moradores de rua. E tivemos um vereador em Lajeado (RS) que queria instalar um vaso sanitário no meio de um terreno baldio no qual vez por outra acampavam ciganos.

Enfim, como foi muito bem colocado certa vez pelo líder católico, crítico literário, escritor e professor Alceu Amoroso Lima (1893-1983), membro da Academia Brasileira de Letras – ele também usava um pseudônimo, assinando como Tristão de Athayde –, “a maior inflação brasileira é de estupidez”.

25.11.2024

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