A RELIGIÃO COMO BENGALA
Estive lendo com muita atenção um texto que me foi enviado por pessoa muito amiga. Ele foi escrito por Sérgio Seixas, um astrólogo brasileiro que trabalha também com medicina tradicional chinesa, sendo ainda um dos fundadores do Terra de Rudá, um núcleo de intervenção inspirado na psicologia profunda e na experiência com o sagrado. Nesse texto em questão ele compara, em determinado trecho, a religião com um barco. “Ao completar a travessia do rio devemos sair e caminhar em terra firme”, diz ele. Depois, acrescenta que “não devemos ficar eternamente alunos, eternamente filhos pedintes de proteção”. Sugere assim uma espécie de autonomia dos filhos em relação ao pai, a exemplo do que ocorre na vida material, conforme a maturidade chega. O que, convenhamos, é algo em que devemos pensar.
Qual pai e qual mãe não deseja ver que o resultado da criação dada com tanto amor aos seus filhos e filhas permitiu o surgimento de adultos felizes, sadios e bem sucedidos? E isso não significa que deve haver, a partir desse instante, uma ruptura, um afastamento. Em relações saudáveis, há equilíbrio entre o orgulho dos pais e o reconhecimento dos filhos. De igual forma, segue existindo a preocupação mútua pelo bem estar, pela felicidade. Agora, vamos examinar com maior cuidado esta relação espiritual, entre criador e criatura.
Por que ela seria diferente? Deus, diante da vastidão do universo, diante de sua própria majestosa e infinita obra, deveria tão eternamente quanto o tempo que também criou, ficar debruçado nas minúcias dos problemas que nós mesmos causamos? Precisaria para sempre nos pegar pela mão e resolver as coisas, seja diretamente ou através de representantes seus na espiritualidade? Se Deus me ajudar, vou conseguir tal coisa! Como assim? Ele já ajudou e muito lhe dando a existência, sua individualidade, capacidades e talentos. Agora, provavelmente, o que lhe agradaria é ver o que você está fazendo com isso tudo. Se Deus permitir, vou chegar lá! Por que ele não permitiria?
Outra coisa insuportável é aquela necessidade constante que as religiões têm de se impor pelo medo e pela dor. Isso ocorre em especial com as judaico-cristãs, sendo diferente com as orientais. Assim, temos o risco da punição se tornando elemento a pairar sobre as cabeças dos seguidores, como uma ameaça permanente. O pai que ama, mas que traz em si um elemento sádico. Nos dá o livre-arbítrio e, no entanto, fica com vontade imensa de castigar quem dele faz uso ao contrário dos seus desejos. Ou seja, uma falsa liberdade. Não à toa surgem os “tementes a Deus”, uma expressão que eu particularmente detesto.
Nunca desejei que meus filhos me temessem. Sempre sonhei que eles me respeitassem e, melhor ainda, me admirassem. E respeitar não é torcer para que pensem como eu, ajam como eu. Ao contrário: o ideal seria ser superado em tudo, com ambos seguindo por caminhos próprios e alcançando conquistas as quais eu não consegui alcançar. Não que Deus possa ser superado: essa figura que faço com as palavras não cabem exatamente quando a relação é com Ele. Porém, com certeza absoluta, lhe agrada contemplar a evolução de seus filhos e filhas. Aliás, essa condição é preconizada pelo espiritismo, por exemplo, quando se refere à necessidade de nossa evolução. Nesse aspecto essa corrente filosófica, que também é cristã, está mais próxima das orientais.
Enfim, Sérgio Seixas foi muito pertinente naquele seu texto. O que ele consegue em geral com tudo o que escreve. De algum modo, aponta e reforça o erro comum de usarmos a religião como uma bengala. E não como algo que se carrega enquanto alguma enfermidade nos exige, por exemplo. Um instrumento de apoio temporário. Mas, como uma bengala permanente, como uma confissão de nossa incapacidade de caminhar sem ela seja também eterna. Sendo assim, a palavra “religião” deixa de ser utilizada nas suas acepções primeiras.
Usei o plural porque são duas as origens etimológicas atribuídas. Viria do latim relegere, que significa “ler de novo”. Isso indicaria a necessidade de um cuidado escrupuloso, uma atenção reverencial e profunda sobre o que seria o sagrado. Porém, pode também ser de religare, apontando para “ligar de novo”, no sentido de reaproximação, reconexão com o superior, com a divindade. De uma dessas duas possíveis origens surgiu religio, que passou a referir “cerimônia, culto, santidade”. O que, no passo seguinte, terminou gerando religião em português.
Vejamos, para concluir, que nenhum dos dois caminhos citados acima apontam subserviência, dependência eterna. Sugerem que se “leia” o que está posto diante de nós. Propõem que se estabeleça um elo com o divino. O verdadeiro ajoelhar-se é reverência, jamais submissão. Assim, as religiões como as concebemos hoje podem muito bem terminar, no dia em que se entenda melhor o que é a graça da vida, suas razões mais profundas e o nosso real destino.
23.06.2025

O bônus de hoje é o clipe de My Spirit Flies To You (Meu Espírito Voa Até Você), interpretado por Les Moines Bouddhistes.