Uma cena de fato contundente pode ser vista em um dos episódios da série televisiva estadunidense, The West Wing. Ela foi exibida no Brasil com o nome Nos Bastidores do Poder. Produzida nos EUA entre os anos 1999 e 2006 pela NBC, tinha como personagem central um presidente fictício daquele país, Josiah Bartlet, que era interpretado pelo ator Martin Sheen. Nela está ocorrendo uma recepção na Casa Branca e uma das pessoas presentes é uma mulher conhecida como Dra. Jenna Jacobs (papel de Claire Yarlett), que apresenta um programa em emissora de rádio, no qual aconselha pessoas baseada em preceitos e preconceitos religiosos.

O presidente, que é do Partido Democrata, se aproxima do lugar onde está sentada e pergunta se ela tem Ph.D. em Psicologia, Teologia ou Medicina. Ela responde que estudou Literatura Americana e ele diz que talvez os seus ouvintes fiquem confusos, pois a radialista não tem experiência em nenhum dos assuntos que aborda. Depois a interpela querendo saber por que manifestou a opinião de que homossexualidade é uma aberração. Ela responde, segura de si, que essa opinião não é dela e sim está expressa na Bíblia, em Levíticos 18:22.

A partir disso ele a bombardeia com outras perguntas, sempre apoiadas também em textos bíblicos, mas totalmente absurdas diante do mundo moderno. “Eu quero vender a minha filha mais nova como escrava, como é permitido em Êxodus 21:7”, fala o presidente, que prossegue. “Ela está no segundo ano da Georgetown, fala italiano fluente e sempre limpou a mesa, quando era a sua vez. Qual seria o preço adequado para eu pedir?”, concluiu em evidente ironia. Antes que Jenna respondesse, revela outra suposta situação: “Meu chefe de assessoria Leo McGarry insiste em trabalhar aos sábados. Êxodus 35:2 diz claramente que deve ser morto. Eu estou obrigado moralmente a matá-lo?”.

Ele prossegue falando sobre Levíticos 11:7, que afirma que tocar na pele de um porco morto torna a pessoa impura. E pergunta se o irmão John, por ter plantado vegetais diferentes lado a lado, deve ser punido como determina a Bíblia. Ou se a mãe dele pode ser queimada numa pequena reunião de família por vestir roupas feitas com dois tecidos diferentes, o que os textos também preconizam. Para concluir, diante da passividade da mulher, que não esperava por isso, avisa que se um presidente está em pé, as pessoas ao redor não devem permanecer sentadas. Para que o momento de absoluto constrangimento termine, um dos assessores do presidente se aproxima dela, que se levantou, e apanha um dos bolinhos de caranguejo que ela tem no prato que está nas suas mãos. O que está também proibido de ser comido, em Levítico 11.

Apesar da série ser identificada como dramática, ela mostra a vida na Casa Branca com generosas doses de humor. Quem a criou foram John Wells, Aaron Sorkin e Thomas Schlamme. O primeiro deles é escritor e produtor, trabalhando também com teatro. O segundo é um excelente roteirista e dramaturgo. E o terceiro se trata de um diretor de televisão.

O que não falta, na atualidade, é gente fazendo leitura seletiva de textos bíblicos para com eles atacar quem não pensa de modo igual. O que, convenhamos, nada tem de espiritualidade e está, isso sim, ligado ao desejo de controle, de poder. É a hipocrisia de “cristãos” que ignoram ser a mensagem de Jesus trazida pelos evangelhos que compõem o Novo Testamento, preferindo as descontextualizadas escrituras que estão no Velho Testamento. Na realidade, o verdadeiro pecado é aceitar tudo sem questionar. A lei mosaica previa a pena de apedrejamento de adúlteros, homens e mulheres. Está em Deuteronômio 22:24 e em Levítico 20:10. Há quem diga que, se levada ao pé da letra, teríamos hoje uma absoluta falta de pedras ou de praças públicas suficientes. O que também nem é relevante, pois os pregadores estão muito mais interessados em garantir o dízimo e fazem vistas grossas em relação a muitas coisas – o exemplo dado, então, é das falhas que mais precisam ser desconsideradas.

Não por acaso a questionada frase “um ateu não é a pessoa que não leu a Bíblia: é aquela que leu e entendeu”, ganha força. Outros preferem ela mais completa: “Compre uma Bíblia e nunca leia e serás um católico; aproveite apenas as partes dela que lhe interessam e serás um pentecostal; leia toda e estude, pesquise, converse e questione, e terás tudo para ser um ateu”. Afastando-se o evidente exagero, não há como não considerar isso, ao menos do ponto de vista meramente intelectual, sem o acréscimo da fé como componente indissociável quando se trata do tema. E, cá entre nós, preconceito sequer precisa de desculpa.

19.04.2025

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O bônus de hoje é um vídeo com a música Quem Planta Preconceito? cantada ao vivo. A banda Natiruts, de reggae e pop, foi formada em 1996 no Distrito Federal. É liderada por Alexandre Carlo, principal compositor e vocalista do grupo.