O BLUSÃO QUE COMPREI E NUNCA USEI

A época era de vacas magras. Tudo o que se tinha era contado, com os valores de uma aposentadoria bastante prejudicial que “premiou” meu pai conseguindo pagar aluguel, alimentação e quase nada mais. Morávamos em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, onde os invernos têm geralmente um rigor considerável. E meus poucos agasalhos estavam no limite. Foi quando se resolveu investir na compra de um blusão novo para melhor agasalhar o meu corpo de menino. Me foi dado inclusive o direito de escolher. Então, comprei um que colorisse mais a minha vida, que andava meio cinza. Melhor ainda é que sobrou dinheiro suficiente para que eu tomasse um suco, em uma lancheria perto da loja. Sentei em um daqueles bancos altos, coloquei meu precioso pacote no vão existente sob o balcão, bebi e fui embora sem levar ele. Voltei depois, mas quem achou não devolveu. Lembro do fato e de quanto eu chorei.

Eu fui desatento, sei disso. Talvez porque a felicidade também distraia. Estava tão contente que sequer poderia imaginar o risco de algo dar errado. A vida é assim, cheia de presentes e de oportunidades que a nossa desatenção deixa que se percam. Eu próprio me especializei nisso, talvez tendo sido aquela apenas a primeira ou uma das primeiras vezes. Mas, sei que não estou de modo algum sozinho nisso: muitos outros são como eu. Claro que também temos gente que ocupa o lado oposto deste espectro, agarrando mesmo aquilo que não era destinado para si. Se pode mesmo dizer que o termo “oportunista”, assim denso de energia negativa, foi criado para enquadrar essas pessoas. O que nem sempre é justo, uma vez que há os que aproveitam sem se aproveitar, aqueles que apanham para si sem tirar dos outros.

A vida é competitiva. Existem muitos ditados populares criados para que se perceba isso. Tipo assim, “quem pode mais chora menos” ou “quem pode pode, quem não pode se sacode”. Há coisa mais sutil, ao estilo “bobeou o cachimbo cai da boca” – ou se vai o blusão. E ainda temos os de alerta contra os perigos dessa tendência humana de sermos invejosos e egoístas: “não grite a sua felicidade, pois a inveja tem sono leve”. Eu acho que não estava gritando a minha, se bem que a expressão facial é muito provável que a denunciasse. Também não acredito que tenha havido inveja de quem ficou com o blusão. O máximo que posso afirmar é que não houve, por parte dessa pessoa, sensibilidade suficiente para pensar no dono do pacote. Ou honestidade para deixar o mesmo com a administração do estabelecimento. Só espero que aquele blusão tenha protegido um corpo mais necessitado que o meu. Porque, se as minhas condições estavam longe de ser as ideais, com certeza estavam ainda mais distantes ainda daquilo que enfrentam os desvalidos. Eu tinha minha casa, não passava fome e recebia carinho e atenção.

Triste é saber que o frio gaúcho a cada ano alcança mais pessoas sem agasalhos. Segundo levantamento realizado pela MetSul Meteorologia, a partir de dados oficiais, o último mês de junho foi o quinto mais frio em Porto Alegre, nos últimos 66 anos – a minha idade. E agora, em julho, as frentes frias têm sido especialmente persistentes e intensas. A estatística que aponta a população em situação de rua é algo sempre incerto e está bastante defasada, como quase todas. Mesmo assim, a capital teria tido 3.189 pessoas nessas condições, em 2022. Isso significava um aumento de 55% em relação ao ano anterior. E atualmente há ainda um fato que agrava o problema da falta de agasalhos para outra faixa populacional, uma vez que muita gente perdeu tudo e foi desalojada pela enchente, o que precarizou suas condições. Quem sabe cada um de nós ainda possa doar alguma peça de roupa quentinha, que encontre abandonada em seu guarda-roupas e não sob o balcão de uma lancheria?

23.07.2024

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O bônus de hoje é o áudio da música Dia de Inverno, de Thedy Corrêa e Carlos Stein, com a banda gaúcha Nenhum de Nós.