EU NÃO CONFIO NA NUVEM
Nenhuma nuvem tem vontade própria: todas elas se deslocam ao sabor do vento. Seu destino é vagar por lugares incertos, formando desenhos no céu, o que até motiva nossa imaginação, mas sem que se tenha controle algum do rumo que tomam. Ao contrário dos barcos à vela, por exemplo, que também são empurrados pelo ar em movimento e mesmo assim se pode direcionar o seu deslocamento para o porto onde se deseja chegar. E as nuvens se dissolvem, “se chovem”, se somem. Elas estão ali, mas não estão nem aí para você. São livres, leves e soltas.
Gosto de nuvens, menos as de tempestades. Daquelas que se armam e que, quando se precipitam, chegam ao solo com fúria. As muito amigas dos raios e dos trovões. Meu bem querer dedico às agradáveis, aquelas que flutuam brancas em céu azul. E dançam. As outras têm cor como a do chumbo e dão a sensação de serem quase tão pesadas quanto ele.
Nos últimos tempos passamos a ter uma outra nuvem, essa no singular e ela própria singular em sua função. Ela é um imenso depósito, mas não de umidade. Recolhe tudo o que se joga nela, sejam textos, fotos, vídeos ou documentos. Acolhe contratos, resultados de exames, planilhas e dados os mais diversos. Pode até guardar nossos segredos, se a gente ousa arquivar algum por lá. Inclusive declarações de amor que se resolva pôr não no papel, como antigamente. Está sempre disponível, por perto, sem que se saiba na verdade onde está ou se conheça o seu formato. Semelhança com as outras só no fato de que também não está ao nosso alcance, fisicamente falando.
Desta nuvem eu não gosto. Literalmente, não confio nela. Nunca fomos apresentados, apesar de eu ser sistematicamente informado na internet que ela está à disposição. Mas, mesmo isso sendo verdade, me falta disposição para jogar tanta coisa que prezo nas suas mãos. Admito a hipótese de ser uma dificuldade totalmente minha, talvez uma limitação de ordem psicológica. Entretanto, me incomoda não ter plenos poderes e decisão sobre acesso e outras conveniências. Ela não é um repositório neutro, como querem nos convencer. Quem a criou e administra se torna um intermediário que se aceita compulsoriamente ao fazer uso dela.
Numa pesquisa breve, encontrei nada menos do que 19 empresas que atuam nesse território abstrato, todas elas jurando que seriam as ideais para as minhas necessidades – como sabem quais são? –, destacando sua reputação, preços cobrados, a facilidade de ser usada e todos os recursos disponibilizados. Tudo vai estar sempre lá, me esperando, me garantem sem exceção. O que pode até ser verdade, mas não acredito que seja ela absoluta. Estará enquanto quem controla a armazenagem decidir. Quanto à minha privacidade, que eles juram ser total, não há como eu possa comprovar, restando confiar na palavra de quem não tem sequer rosto.
Essa nuvem me incomoda. Ela prejudica essa relação sensorial que eu tanto gosto com tudo. Eu quero ver, ouvir, tocar os objetos das minhas relações. Sou assim até com gente. Mas, em uma época em que se conversa com a Alexa, que robôs nos atendem quando se busca um contato com empresa, em que a mediação se torna regra até para a busca de relacionamentos amorosos, talvez seja eu o não enquadrado. O dissociado que ainda prefere ter a cabeça nas nuvens, mantendo os pés no chão apenas no que se faz necessário, no que for imprescindível.
19.04.2024

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