MEU CORPO FOI ALTERADO

Não sei exatamente quando isso aconteceu, mas consta ter sido perto do final de 1996. Eu acabara de ser pai pela segunda vez e tinha, portanto, dois maravilhosos motivos de alegria e preocupação, razões muito mais merecedoras da minha atenção do que aquela dada ao meu próprio corpo. Então, em uma determinada noite, fui dormir com tudo no lugar e não acordei do mesmo modo, na manhã seguinte. E as modificações não foram poucas. Tinham sumido, por exemplo, perônios, omoplatas e até mesmo os cotovelos. Nos lugares deles estavam lá, sem que tivessem pedido meu consentimento, fíbulas, escápulas e cúbitos. Algo de fato assustador. Depois de quase 40 anos de convívio, essa mudança radical, extrema. Nem as minhas amígdalas, que eu nunca operei, não tendo a desculpa para uma overdose de sorvete durante a recuperação, haviam sobrado. Estava lá umas tais de tonsilas palatinas. E meus queridos e já baleados joelhos, devido ao futebol, tiveram suas rótulas pendurando as chuteiras e sendo trocadas por um par de patelas. Asseguro a vocês: foi mesmo um trauma.

Não se interrompe assim uma relação de tanto tempo. Esse rompimento aparentemente imotivado é terrível, desestrutura, confunde. Tantos anos depois – mais 27, para ser preciso – eu ainda sigo com uma dificuldade enorme para me adaptar. Até porque não parou por aí essa invasão, com uma troca de mais de duas mil palavras que antes eram corriqueiras nos cursos formadores de profissionais da saúde, nos hospitais e clínicas. Isso representou cerca de 30% dos 6.700 nomes usados para identificar aquelas partes ditas macroscópicas do corpo humano. Se considerarmos as microscópicas e as que foram então batizadas, deu mais de 40% do total. Naquela ocasião, só os dentistas ganharam 77 novos termos. Cada curva de cada dente passou a ter um nome posto para indicar sua localização exata. Esses se enquadram nos “novos batismos”, que citei antes. Segundo os profissionais, essas inovações serviram para aumentar a precisão na hora de descrever casos clínicos.

Quem teve o poder de fazer isso foram os componentes de um comitê internacional que reuniu 21 anatomistas eleitos por seus pares de 30 países. O grupo trabalhou sete anos na elaboração da proposta, que terminou sendo aprovada. Essa turma toda desejava simplificar certas expressões e também falar a mesma língua – evidente que não refiro aqui o órgão constituído de músculo e revestido de mucosa, aquele que temos na boca e que se relaciona com deglutição e paladar. Agora, se o meu corpo e os das demais pessoas todas foram alvo daquela “regulamentação”, no caso específico das mulheres as coisas foram ainda mais profundas. Porque foi parcialmente enfrentada e rompida uma tradição de atribuir nomes de homens para algumas das suas regiões anatômicas. Estes foram despejados, destituídos, defenestrados lá em 1996. Por exemplo, não se pode mais dizer que as trompas de falópio – homenagem a Gabriel Falópio, um anatomista e cirurgião italiano – seguem “segurando” os ovários e transportando óvulos, uma vez que seu nome desde então passou a ser tubas uterinas. Quanto ao saco de douglas – homenagem a James Douglas, um anatomista e médico escocês –, que vivia enfiado atrás do útero, este seguiu exatamente no mesmo lugar. Entretanto, passou a ser conhecido como escavação retouterina.

Enfim, como se pode ver, não fui apenas eu a ter enfrentado essa crise de identidade corpórea. Ela foi generalizada e aparentemente não vão mudar de ideia. Pelo menos até que mais anatomistas voltem a discutir isso, talvez outra vez cansados e desejosos de marcar presença no mundo da medicina. Agora, sigo com enorme dificuldade de admitir que tenho o hábito de falar pelos cúbitos. Ou seja, continuo mesmo é falando pelos cotovelos. E eles nunca reclamaram.

29.10.2023

P.S.: Na língua portuguesa a expressão “falar pelos cotovelos” equivale a ser um tagarela. São duas as possibilidades de sua origem: o fato de muitas dessas pessoas gesticularem, levantando e abaixando os braços; ou devido ao hábito de algumas tocarem nos cotovelos de quem seja o seu interlocutor, como forma de chamar a atenção para o que está dizendo. E a outra que usei mais acima no texto, “pendurar as chuteiras”, significa se aposentar, abandonar algum tipo de atividade. Essas explicações se fazem necessárias pelo crescente número de pessoas que estão lendo o blog fora do Brasil.

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