O JARDIM DO TIO VALDOMIRO
Se é verdade que a memória afetiva das pessoas está composta não apenas pela lembrança de momentos, de imagens, mas também por fragmentos de cores, sons e odores, reservo toda a parte olfativa da minha para o jardim do meu tio Valdomiro Serpa. Ele morava na rua Capistrano de Abreu, no Bairro Niterói, em Canoas. E duvido que tivesse outra casa como a dele em toda a cidade. Quando se vinha chegando, a recepção era feita pelo perfume das flores, que ele cuidava com extremo carinho.
O jardim ficava obviamente na frente da casa. E o espaço, que nem era assim tão grande, se multiplicava nas espécies que acolhia. Acho que ele começava suas escolhas na hora de comprar sementes, sabendo das cores e odores que teria depois. Isso parece evidente, mas eu nunca vi. Lembro é das flores já ocupando seus locais, em canteiros e alguns vasos, todas elas deslumbrantes, para o justo orgulho dele. Ele gostava também de livros. Sempre havia mais de um ao lado de sua cama e isso chamava a minha atenção, desde criança. Esse hobby e o seu hábito, juntos com o modo como falava com a gente e também nos ouvia, com a atenção com a qual nos acolhia em sua casa, com certeza foram duas das muitas razões pelas quais eu o admirava.
No início, a jardinagem surgiu como uma atividade com fins alimentícios e também medicinais. A humanidade começou a se estabelecer junto às margens de rios que geravam terrenos férteis, deixando de ser nômade. Assim, surgiram plantações que cresciam em tamanho e importância para sua subsistência. Mas, nas proximidades das residências, foi se tornando hábito cultivar ervas e árvores de pequeno porte, assim como flores que também consumiam. Depois é que essa área foi transformada em expressão também cultural, sendo algo ornamental. Uma espécie de arte, com a qual transformavam a natureza e a paisagem. E também isso chegou a adquirir conotação política e representação de poder, além de até mesmo uma manifestação religiosa. Um bom exemplo disso está nos antigos Jardins da Pérsia, que homenageavam a obra divina e a sua perfeição celestial. Aliás, foi esse o povo pioneiro em termos de espaços contemplativos.
Não havia como não querer passar uns dias das minhas férias na casa do tio Valdomiro. A tia Dorcas e meus primos Paulo e Maria da Graça também eram ótimos motivos para tanto. O carinho que lá se recebia era marca registrada. E quando eu fui crescendo, não podendo mais dormir como no começo, em duas poltronas encostadas servindo de cama, minha admiração tratou de crescer junto. Ele era uma pessoa iluminada. Certamente tinha seus defeitos, como qualquer um de nós os tem, mas havia luminosidade na presença dele. Coisas que a gente ficava torcendo para ter e ser igual a ele um dia.
Bem depois, comigo na faculdade, ele mantinha uma barba que estava branca. E eu também deixei a minha crescer – aliás, muito além da conta e do razoável. Por algum tempo fiquei com feições como a de alguns homens que habitavam meus livros de história. O que passou depois, naturalmente, quando a retirei. Mas antes fizemos uma foto juntos, ele e eu. As barbas com grande contraste dos tons, com as camisas fazendo o contrário: ele vestindo uma escura e eu com uma em azul claro. Guardo com carinho.
Meu tio se foi. O jardim ficou, mas jamais seria o mesmo. A casa foi vendida e nunca mais tive sequer coragem de passar por perto. Apenas quando cruzo pela Capistrano, dirigindo pela BR-116, arrisco um olhar cheio de saudade naquela direção. Há coisas que ficam melhores vivendo apenas em nossas recordações. Impossível saber onde ele está, hoje em dia. Como merece ser feliz, na certa tal lugar tem livros. E um belo jardim para ele cuidar.
19.07.2023
Se você gostou desta crônica, garanta a continuidade do blog com uma doação. Isso ajudará a cobrir custos com sua manutenção. Faça isso usando a Chave PIX virtualidades.blog@gmail.com (qualquer valor ajuda muito) ou o formulário existente abaixo. São duas alternativas distintas para que você possa optar por uma delas e decidir com quanto quer ou pode participar, não precisando ser com os valores sugeridos. Toda contribuição é bem-vinda. No caso do formulário, a confirmação se dá depois das escolhas, no botão “Faça uma Doação”.
FORMULÁRIO PARA DOAÇÕES
Selecione sua opção, com a periodicidade (acima) e algum dos quatro botões de valores (abaixo). Depois, confirme no botão inferior, que assumirá a cor verde.
Faça uma doação mensal
Faça uma doação anual
Escolha um valor
Ou insira uma quantia personalizada
Agradecemos sua contribuição.
Agradecemos sua contribuição.
Agradecemos sua contribuição.
Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmente
O bônus de hoje é outra vez duplo: primeiro temos Lua e Flor, com Oswaldo Montenegro; e depois Flores, com Zélia Duncan e Fred Martins.