OS ÓCULOS DE RAUL
Muitas das músicas compostas por Raul Seixas – quarta-feira passada ele teria feito 78 anos – tiveram problemas com a censura. A primeira delas a passar por isso foi a que teve o nome de Oculoescuro (*), depois rebatizada devido às circunstâncias para Como Vovó Já Dizia. Ela foi resultado de uma das tantas parcerias entre ele e o mais tarde famoso escritor brasileiro, Paulo Coelho. Os dois estavam em um hotel, depois do lançamento do disco Krig-há, Bandolo! e resolveram fumar um baseado. Era o mês de julho do ano de 1973, exatos 50 anos atrás. Só depois de terem feito isso os amigos perceberam que não tinham colírio, com o qual poderiam disfarçar os olhos vermelhos, antes do próximo compromisso. Então, recorreram a óculos escuros, mesmo sendo isso um tanto impróprio para o horário. E saíram cantarolando “quem não tem colírio usa óculos escuros”, pelos corredores.
Com essa frase, Raul se deu conta de que poderia estar nascendo mais uma boa música. Então, de posse do seu violão, lascou rapidamente uma primeira versão: uma parte dizia “/Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar /Tudo tá a mesma coisa, cada coisa em seu lugar /Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar /Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar”. Com o refrão “/Quem não tem colírio usa oculoescuro /Quem não tem papel dá recado pelo muro /Quem não tem presente acredita no futuro”. Não passou. Os censores se deram conta de alguns perigos, para a ordem social que queriam fosse eternamente vigente. Recados nos muros, acreditar no futuro, onde já se viu isso? Nada de ter alguma opinião para externar. E o que interessa é a tradição do passado e o controle do presente.
O departamento jurídico da gravadora Philips iniciou um grande esforço para tentar a liberação, que foi condicionada a alterações na letra. Entre as mudanças, a do trecho “/Uma vez a gente aceita /Duas tem que reclamar”, que virou “/Uma vez a gente plim /Outra tem que blá-blá-blá”. E aquele já citado “/Tudo tá a mesma coisa, cada coisa em seu lugar” se tornou “/Se eu danço iê-iê-iê /Ela dança yá yá”. E o refrão, que também já mostrei acima, foi transformado em “/Quem não tem colírio usa oculoescuro /Quem não tem visão bate a cara contra o muro /Quem não planta agora não recolhe no futuro”.
Com toda essa descaracterização, ainda assim sofreu novo veto. Foi reafirmado pelo censor que, não tendo sido trocada a temática, ela ainda assim poderia “incitar atitudes negativas contra o regime vigente”. E a solução final foi acrescentar ditos populares, como “/A formiga só trabalha porque não sabe cantar”, ou ainda “/Quem não tem filé como pão e osso duro”. Daí o pouco letrado que usava farda e uma caneta, como fora determinado pelos seus superiores, deixou passar. Outro grande sucesso chegaria ao povo brasileiro, mesmo que mutilado pela tesoura da ignorância intolerante.
Raul Seixas, o Maluco Beleza, além de compor e cantar também foi um multi instrumentista e produtor musical. No período de sua vida em que viveu no Rio de Janeiro, foi também produtor musical da CBS. Este soteropolitano de nascimento, faleceu em São Paulo com apenas 44 anos, em agosto de 1989, vitimado por uma parada cardiorrespiratória causada por uma pancreatite. Roqueiro de formação, seu verdadeiro sonho era tornar-se um escritor, como Jorge Amado. Sua carreira teve repercussão nacional a partir de 1972, quando participou do Festival Internacional da Canção, com duas composições que chegaram às finais: Eu Sou Eu e Nicuri é o Diabo, defendida por Lena Rios & Os Lobos, e Let Me Sing, Let Me Sing, cantada por ele próprio.
Entre seus grandes sucessos estão Metamorfose Ambulante, Gita, Ouro de Tolo, Cowboy Fora da Lei e Tente Outra Vez. Mas produziu muito mais do que essas cinco, existindo 299 obras catalogadas no banco de dados do Ecad. E entre as demais canções dele que foram censuradas, muitas sem que a liberação ocorresse em momento algum, mesmo que sob condições impostas, existem várias que jamais foram gravadas. Não se sabe onde foram parar todos esses originais. E, mesmo que localizados, o contexto atual seria outro, além de faltar o carisma do compositor para a sua interpretação.
03.07.2023
(*) Na letra original ele realmente escreveu Oculoescuro e não Óculos Escuros.

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Faça uma doaçãoDoar mensalmenteDoar anualmenteO bônus de hoje é uma dose dupla de Raul Seixas. Primeiro com a música que tem sua história abordada na crônica de hoje: Como Vovó Já Dizia. Depois é a vez do áudio da excelente Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás. Acrescento ainda o link para outro texto que publiquei aqui no blog sobre ele, em 06 de maio de 2021.