Um garoto brasileiro está vivendo em Berlim, terra natal de seus pais, durante a Segunda Guerra Mundial. Haviam deixado Belo Horizonte em 1939, atraídos pelas supostas oportunidades que poderiam ter, com a era de prosperidade vivida pela Alemanha. Poucos anos depois, aquele se mostrou o local errado, no momento errado. Numa simples ida até a padaria, ele termina recrutado à força para servir no exército nazista. Esse é o ponto de partida para uma narração fascinante e que parece simples fruto da imaginação do autor. Mas não: ela é baseada num diário, numa história real. Um velho manuscrito chega às mãos do jornalista Tarcísio Badaró e ele nos repassa tudo o que aconteceu com Ewaldo Horst Brenke, numa aventura emocionante, com relatos de dor, mas também de audácia. Era um Garoto – O soldado brasileiro de Hitler foi o título dado ao livro publicado com essa história em 2016.
Se faz necessário destacar que Horst não foi o único brasileiro a lutar como soldado no lado alemão, naquele conflito. Ocorreram dezenas de casos. O que difere sua história das demais é justamente o fato dela ter sido documentada pelo protagonista, bem como não ter sido essa uma decisão voluntária. O fato aconteceu no dia 6 de janeiro de 1945, já nos estertores da guerra. Ele tinha 18 anos e não adiantou tentar explicar que nascera em Curitiba, no Brasil. Como seus pais eram alemães, havia legalidade na “convocação” feita para defender o país comandado pelo lunático. Levado para o campo de batalha, acabou em pouquíssimo tempo sendo capturado pelo exército russo, que foi o primeiro a invadir a Alemanha, assegurando a vitória aliada. No final de abril do mesmo ano Hitler estaria morto e, no início do mês seguinte, a rendição dos vencidos seria assinada.
Após ser capturado, Horst foi conduzido para o campo de prisioneiros de Stalag VIIIC. Lá ele começou a fazer anotações no diário que escreveu entre maio de 1945 e outubro de 1946, volume que chegou aos pedaços para Badaró, sete décadas depois. Após, ficou numa fábrica de tratores existente na muito antiga cidade de Vladimir – foi fundada em 1108, tendo sido uma das capitais medievais da Rússia –, distante cerca de 200 quilômetros a leste de Moscou. O frio, muitas vezes de 30 graus negativos, era outro fator de desesperança, além da impossibilidade de ter contato com a família. Mas isso acabou depois de um ano, quando foi afinal libertado. Uma viagem de trem o deixou em Udine, na Itália, em julho de 1946. Enquanto aguardava por documentação necessária para voltar ao Brasil, morou na rua, dormiu em sanatórios e enfrentou muitas privações. Mas soube que sua família continuava em Berlim e estava bem, tendo inclusive conseguido trocar cartas e postais.
Para reconstruir essa história, Badaró acrescentou à leitura do diário uma série de entrevistas feitas nos locais por onde o brasileiro passou. Isso enriqueceu o texto, já facilitado pela riqueza de detalhes existentes nas anotações recebidas. A obra vai além e acrescenta a reconstituição das vidas da mãe e da irmã do soldado, com as agruras que enfrentaram enquanto a Alemanha estava sendo devastada com os ataques finais. Nem Horst nem seus familiares tinham simpatia pelo extremismo de direita que levou a nação à derrocada. Esse retorno ao Velho Continente fora motivado pela busca de uma vida melhor, apenas isso.
Dois anos após estar outra vez na capital das Minas Gerais, ele recebeu seu pai, a mãe e a irmã, que também conseguiram retornar. A vida de todos foi reestruturada, aos poucos. O garoto que foi comprar pão e virou soldado casou com uma brasileira, teve sete filhos e viveu até maio de 1984, quando foi vitimado por um câncer, aos 57 anos. Sem saber que as mesmas ideias que causaram a Segunda Guerra Mundial estariam de volta, menos de quatro décadas depois. Pior que agora dos dois lados do Atlântico.
24.01.2021

O bônus de hoje é a música Era Um Garoto Que Como Eu Amava Os Beatles e Os Rolling Stones, em gravação feita pela banda gaúcha Os Engenheiros do Hawaii. Ela faz parte do álbum O Papa é Pop, de 1990. Essa canção é do italiano Gianni Morandi, tendo sido por ele gravada originalmente em 1966. Rita Pavone e Joan Baez também a incluíram em seus repertórios. O título do livro de Tarcísio Badaró parece ter sido inspirado parcialmente nela.
Muito bom texto. Me instigou. Vou procurar o livro.
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Interessante a história real do Ewaldo Horst Brenke. Também gostei da sua seleção de música.
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Muito bom Solon, não conhecia esses detalhes. Texto e música excelentes, amigão! Parabéns! Grande abraço!
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Obrigado por esta incrível história, quantos devem ter se encontrado neste tipo de situação …
Como você diz no lugar errado na hora errada, e o que teríamos feito em seus lugares?
Bom dia para voce Solon
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Obrigado pela leitura e pelo comentário. Vou tentar explicar o detalhe ao qual você se refere. Aqui no Brasil usamos a expressão “estar no lugar errado na hora errada” para dizer que alguém foi atingido por um acaso negativo. Uma espécie de azar. Talvez no teu idioma, o francês, seja de outra forma. Grande abraço!
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