A vida dessa mulher rendeu uma música, um livro, um samba-enredo e um filme. Seu nome foi dado a uma via pública, na capital dos cariocas. Reconhecida pela sua criatividade e capacidade profissional, não foram essas características, no entanto, que lhe renderam tantas homenagens. Sua determinação e a coragem de enfrentar obstáculos instransponíveis na busca do filho que tanto amava é que marcaram sua existência e lhes permitiram reconhecimento tardio. Ela nasceu Zuleika de Souza Netto, no município de Curvelo, nas Minas Gerais, em 1921. E morreu Zuzu Angel, em circunstâncias muito suspeitas, na cidade do Rio de Janeiro, em 1976.

De família humilde, ainda criança e morando em Belo Horizonte começou a ajudar a mãe, costurando para fora, como alternativa de sobrevivência. Nos raros momentos que tinha para si mesma, continuava com a mesma atividade, mas agora aproveitando retalhos para criar modelos e produzir roupas para as bonecas de suas primas – não tinha sequer como possuir ela mesma alguma. Com isso, nascia prematuramente a estilista que alcançaria fama internacional. Poucos anos depois, ainda adolescente, foi com a família para Salvador. Na capital baiana entrou em contato com a cultura afro-brasileira, tendo sido marcada em definitivo por essa influência multicolorida e rica.

Aos 18 anos foi morar sozinha no Rio de Janeiro. Mas apenas nos anos 1950 conseguiu, na capital fluminense, começar na atividade com que sempre sonhou. E só duas décadas depois, ao investir todas as suas economias pra abrir loja em Ipanema, foi que alcançou afinal sucesso. Misturava seda com chita e rendas, usava temas regionais e valorizava o folclore nas suas confecções. Adorava estampados com borboletas e pássaros. E fazia usos inesperados de conchas e de fragmentos de bambu e pedras. Inovadora, alcançou reconhecimento internacional, fazendo uma série de desfiles a partir dos EUA.

Na vida privada, conheceu e casou com o norte-americano Norman Angel Jones, com quem teve três filhos, antes de separar-se. O primogênito Stuart Angel Jones e duas meninas. O rapaz, no final dos anos 1960, estudante de economia, passou a integrar organizações de esquerda, que combatiam a ditadura militar. Em 1971 foi preso, torturado e morto no Centro de Informações da Aeronáutica, localizado no Aeroporto do Galeão. Seu corpo jamais foi devolvido para a família, figurando apenas o nome na lista de “desaparecidos” – consta ter sido jogado em alto mar. Com isso, a determinada Zuzu tornou-se também destemida.

Ela literalmente declarou guerra ao regime. Criou coleção estampada com manchas vermelhas de sangue, motivos bélicos e pássaros engaiolados. Realizou um desfile-protesto no consulado do Brasil em Nova York. Furou a segurança e conseguiu entregar dossiê para o secretário de estado norte-americano Henry Kissinger, numa visita que fazia ao nosso país – o filho dela tinha dupla nacionalidade. Invadiu o apartamento do general Ernesto Geisel quando já se sabia que ele seria o próximo a assumir a presidência no rodízio que a ditadura promovia, para também buscar respostas. Conseguiu pautar jornais de vários países do mundo. E obteve apoio de celebridades internacionais que eram suas clientes, como Joan Crawford, Kim Novak e Liza Minelli. Pedia o corpo do filho e a admissão do crime. O então senador Edward Kennedy discursou no senado dos EUA exigindo que seu pleito fosse atendido.

Mas ele não foi. Na madrugada de 14 de abril de 1976 o carro que ela dirigia foi fechado por outro e jogado fora da pista na Estrada da Gávea, na saída do Túnel Dois Irmãos. Morreu no local. Uma semana antes ela deixara documento dizendo que estava correndo risco e que, se algo lhe acontecesse, os responsáveis seriam os mesmos que haviam assassinado seu filho. Uma foto publicada por O Globo na época mostra o coronel e torturador Freddie Perdigão Pereira no local do “acidente”. O ex-agente da repressão, Cláudio Antônio Guerra, confirmou em 2014, no seu livro Memórias de uma Guerra Suja sua própria participação no atentado e deu mais detalhes desse e de outros crimes.

A música que a homenageou foi Angélica, composta em 1977 por Chico Buarque sobre melodia de Miltinho, um dos integrantes do MPB4. O livro é o romance Em Carne Viva, escrito por José Louzeiro em 1988. Em 1998 ela foi lembrada pela Escola de Samba Em Cima da Hora, na Marquês do Sapucaí, que desfilou com o enredo Quem é você, Zuzu Angel? Um anjo feito mulher. E em 2006 o filme Zuzu Angel chegou às telas, obra do cineasta Sérgio Rezende, com Patrícia Pillar no papel título. O túnel que liga o bairro de São Conrado com a Zona Sul, no Rio de Janeiro, local onde ela foi emboscada e morta, tem agora o seu nome. O filho, esse ela deve finalmente ter reencontrado.

22.06.2020

O bônus de hoje mostra, com o grupo MPB4, a música de Chico Buarque e Miltinho. Participa do arranjo Antônio José Waghabi Filho, o Magro. Gravação feita no show Bons Tempos, em 1980. Uma melodia triste como é a saudade que se tem de um filho que jamais irá voltar.

4 Comentários

  1. Pois, Solon,
    não que eu andasse aqui sem o gosto amargo, prenúncio de choro por tudo que vejo e prevejo nestes dias de tantas perguntas, mas te digo: chorei com essa biografia, que eu não conhecia, seguida da canção, agora pra mim ressignificada.

    Quem é essa mulher?

    Pietá de braços vazios. Voz silenciada, tal Marielle, mirada e morta.

    Os tempos continuam, e em paralelo seguem as perguntas, sem sequer uma luz surgindo na boca daquele ou de outro túnel.

    Com o medo medrado em nós, choramos. E mesmo assim resistiremos.
    Tua crônica de hoje foi catártica e em muito nos fortalece.

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    1. Tua percepção sensível valoriza o texto. E a citação da Pietá agrega muito. Quem não teve a possibilidade de conhecer a original, de Michelangelo, na Basílica de São Pedro, pode ao menos ver a bela réplica na Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. Sugestão de bom passeio para depois da pandemia. Abraço!

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  2. Muito bom, conhecia a música, mas não tinha noção do que se tratava! Agora eu sei! Vivendo e aprendendo! Valeu amigo! Aquele abraço…

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