Pelo menos uma das manifestações ocorridas durante a ditadura militar, se pode com certeza assegurar, deixou os comandantes fardados surpresos e sem saber exatamente como agir. Foi em 17 de julho de 1967, na cidade de São Paulo. Cerca de 400 pessoas, lideradas por Elis Regina, Edu Lobo, Zé Kéti, Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Jair Rodrigues saíram do Largo São Francisco e seguiram pela Av. Brigadeiro Luís Antônio até a frente do Teatro Paramount, território de grandes eventos na época. Acompanhado bem de perto por bom número de soldados armados – e certamente por outro tanto de agentes não identificados –, o grupo levava faixas e cartazes, exigindo a “defesa do que é nosso” e a proibição da guitarra elétrica.

Na verdade, isso era apenas o auge absurdo de uma disputa por audiência, entre dois musicais da televisão. Na época os programas de auditório – de variedades ou musicais – ocupavam o lugar de destaque nas grades da programação noturna, pois as telenovelas ainda não tinham a estrutura de produção que com o tempo lhe deu primazia. Só existia a TV aberta, em preto e branco, com poucos canais e que não ficavam 24 horas no ar. Filmes eram mais escassos e futebol ou outros esportes eram cobertos com enorme dificuldade, em virtude de o equipamento ser inapropriado pelo peso e tamanho. Neste cenário, O Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues recebendo convidados, reinava absoluto até a chegada da Jovem Guarda, com mais participantes liderados, por assim dizer, por Erasmo e Roberto Carlos. O primeiro era pura MPB, o segundo abriu espaço para o instrumental elétrico e começou a crescer no gosto popular.

Essa luta por mercado e um certo “purismo” do grupo que defendia a cultura nacional contra a “invasão” das canções em inglês levou a que marcassem encontro para discutir o assunto. Nara Leão e Caetano Veloso estavam na reunião, que decidiu pela realização da passeata, mas não concordam em participar. Ficaram vendo tudo de uma das janelas do Hotel Danúbio. Chico Buarque nem sequer foi ao encontro, justificando que preferia Os Mutantes dividindo palco com Martinho da Vila, sem ver problema nisso. Mas a hilária – aos olhos de hoje – manifestação acabou de fato ocorrendo. Para espanto do aparato responsável pela “ordem pública”, ninguém clamava por liberdade ou contra a ditadura. Gritavam era contra um instrumento musical, algo completamente impensado.

Os militares no início viam com bons olhos a chegada do som das guitarras elétricas, moda então importada dos EUA – que sofria ele próprio a invasão das bandas inglesas. Preferiam a suposta alienação que vinha junto, ao invés do som da MPB engajada, que tinha um DNA nacional e letras sobre as quais a censura precisava sempre se debruçar. Depois de algum tempo, nem todos eles comungavam dessa ideia, jurando que os roqueiros sem exceção não passavam de um bando de cabeludos maconheiros. Deste modo, se pudessem escolher iriam preferir que ambas as correntes fossem erradicadas: a MPB vinda da Bossa Nova e contemporânea da Tropicália; bem como o rock que ocupava espaço a partir da Jovem Guarda.

Há registro fotográfico do acontecimento, que transcorreu sem incidentes. Mas muitos dos participantes depois de algum tempo passaram a preferir ocultar o fato. Mesmo sendo algo inédito em todo o mundo, ninguém parecia mais querer ser associado a ele. Da vanguarda musical, tudo bem. Desse ato “revolucionário”, não muito obrigado.

23.05.2020

O “bônus” de hoje é com o guitarrista mexicano Carlos Santana, que ficou mundialmente conhecido a partir de sua apresentação impecável no Festival de Woodstock, em 1969. A música Samba Pa Ti, tocada durante evento em Las Vegas, mostra com clareza o som singular do instrumento.

12 Comentários

  1. “Samba Pa Ti” trouxe “Pa mim” um tempo em que resistir era palavra que passava cheia de medo pela cabeça da gente: era ser subversiva.

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  2. Querido Solon, queria mandar para um amigo mas o conjeço e sei que logo me.pediria algumas fontes… pode colocar aqui? Este resgate foi ótimo e o vídeo do Santana demais… abraço e obrigado….

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    1. Goes, desculpe ter demorado para responder. Fiquei fazendo outras coisas no dia e deixei passar. Vários jornais publicaram matéria sobre o acontecido, quando dos 50 anos do fato, em 2017. Uma outra boa fonte é a Revista Fórum do dia 15 de julho daquele ano. Abraço!

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  3. Tenho visto alguns documentários sobre a mensagem deste texto, na verdade, tudo vira parte da história, independentemente dos prós ou contra, de um lado ou do outro de tais manifestações! A grande verdade é que atualmente, o som da guitarra reina imponente em qualquer música, brasileira, colombiana, japonesa ou americana! Ela dá aquele toque especial em qualquer ritmo musical produzido deste planeta! Poderia citar além do espetacular Carlos Santana, dezenas de outros guitarristas que marcaram a minha/nossa vida, mas deixo aqui alguns toques especiais: Slash do Guns N’ Roses, na abertura de Sweet Child O’ Mine – Mark Knopfler, em todas, mas em especial, na faixa: The Tong Road – Humberto Gessinger tem vários solos inesquecíveis na música: Era um garoto… – Chuck Berry, especialmente na inesquecível introdução de Johnny B. Goode – Pepeu Gomes, etc… etc… etc… Quem gosta de música, jamais pode dispensar uma guitarra! Grande abraço, amigo!

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    1. O fato foi pitoresco e precisa ser entendido naquele contexto. Hoje seria absurdo ainda maior se opor a um instrumento musical que tem toda essa potência e sonoridade. Abraço!

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