Enquanto esperava que um inquilino reticente desocupasse o apartamento onde pretendia morar, em Porto Alegre, Augusto Franke Bier ficou hospedado no meu, em Nova Prata. Me ajudava no jornal que eu mantinha, escrevendo e ilustrando boa parte das matérias. Não se ganhava dinheiro com isso, mas era divertido. Na pequena redação nasceram obras primas que extrapolaram o território onde circulava a publicação – mas esse é um assunto para outra ocasião. Natural de Santa Maria e criado em Santo Ângelo, ele é um dos cartunistas mais talentosos do RS. Publicou seus primeiros cartuns aos 15 anos e de imediato foi levado para uma conversa na Delegacia de Polícia, porque era proibido tocar em temas como a fome, durante a ditadura militar. Aos 18, quando colaborava no jornal Denúncia, do jornalista Tau Golin, foi recolhido ao xilindró por alguma ousadia semelhante. Mas sobreviveu e concluiu o curso de jornalismo, na PUC.

Nas manhãs geladas da serra gaúcha, bater na porta do quarto dele era insuficiente. Espiando para dentro, difícil era acreditar que ele estivesse vivo debaixo de uma quantidade inenarrável de cobertores, que não se moviam com a respiração dele. Mas terminava saindo da hibernação, resmungando rumo ao café e ao trabalho. Por algum tempo nos alimentamos comprando vianda num restaurante que fora aberto no Automóvel Clube. Depois nos revezávamos na limpeza dos recipientes, removendo a gordura que se acumulava no fundo, com muita água quente, paciência, detergente e algum talher fazendo a função de espátula. Sobrevivemos porque éramos jovens o suficiente para a circulação sanguínea suportar alguns abusos. Vez por outra íamos na Cantina Itália, do amigo Bocchi. Nessas oportunidades consumíamos um honesto bife à parmegiana, bebendo cerveja ou vinho e jogando muita conversa fora.

O Bier também conseguiu nesse período me ensinar uma série de palavrões que eu nem sabia que existiam. Certa manhã o alemão estava tomando banho quando uma vespa entrou pela janela e depositou seu ferrão com vontade em região que, se não fosse por ele estar no chuveiro, estaria devidamente coberta. Nunca vi o cara tão bravo. Foi quando ele desfiou um rosário de expressões que fariam corar cafetão na zona. Mancando um pouco e ainda molhado ele tratou de colocar fogo no vespeiro que se formara na varanda, usando um cabo de vassoura com pano embebido em álcool, devidamente aceso. E resmungava vingado para cada inseto que abatia. Teria saído pela cidade fazendo o mesmo – pelo mundo todo, se pudesse. Trabalharia sem nenhum pudor pela extinção da espécie. Teve dificuldades para sentar, nos dias seguintes. E cada vez que tentava pronunciava baixinho alguma coisa indecifrável, talvez em dialeto vindo lá das terras dos seus antepassados europeus. Quanto a essas palavras, achei prudente não perguntar o que significavam.

Muito do que se fez por lá vai permanecer na conta do esquecimento conveniente, para todo o sempre. Coisa assim tipo arquivos secretos da CIA. Mas que foram tempos felizes, isso foram mesmo. Depois, seguimos nossos caminhos distantes um do outro, mas sem que a amizade e o respeito fossem abalados. Ele trabalhou por anos no Sindicato dos Bancários e chegou a dirigir duas vezes o Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa, com competência que deveria ter ficado como exemplo. Foi premiado no Salão Internacional de Humor de Piracicaba e também no Salão de Duisburg, na Alemanha, com trabalhos ricos no traço e na ironia, uma das suas maiores e melhores características. Contribuiu nas redações de O Pasquim e Tchê! – jornais alternativos que marcaram época –, e publicou alguns livros que merecem recomendação de leitura. A série sobre Blau, um personagem inspirado nos imigrantes alemães que colonizaram o interior do nosso Estado, marcou época. Seu passeio pelo terreno da poesia rendeu Serenata para uma Janela Fechada. E recém lançou o excelente Rio Grosso do Sul, mostrando em preto e branco muito do que é a vida dos habitantes deste território tão peculiar abaixo do Mampituba.

Tenho todos e com dedicatórias. Mas não empresto de jeito nenhum: quem empresta um livro a um amigo corre o risco de perder ambos. Para que ninguém morra de inveja, deixo aqui o contato do autor (afbier@cpovo.net). Vá que além de obter seus exemplares vocês também consigam que ele conte outras histórias, daquelas que preferi deixar de fora.

13.05.2020

18 Comentários

  1. Muito bom, Solon. Gostoso de ler. Viajei no tempo por nossa Nova Prata , pelos locais que citaste. Lido hoje, 13 de maio, dia da abolição da escravatura. Mas como nos mostra a charge sempre talentosa do Bier, temos ainda muito para abolir. E em se tratando de nosso Brasil diria mais: temos ainda muito para eliminar. Parabéns . Da tua coletânea de blogs, teremos com certeza um excelente livro. Estou na fila dos autógrafos ( se sobrevivermos). Abraço !

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    1. Obrigado, Sérgio! Nova Prata sempre vai mesmo ocupar um lugar especial no meu coração, junto com tantos bons amigos que fiz na cidade. Vou de fato tentar o livro, mais adiante. E reservo teu exemplar, com certeza. Grande abraço!

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      1. Solon,
        biografia é sempre uma leitura instigante. Falar de morto é fácil, mas foste capaz de biografar o cartunista, amigo presente e ainda teu leitor, sem muitas apologias e com restrições permeadas de humor fino, elegante e inabalável.

        Quero ler “Rio Grosso do Sul”, justo para abolir escravaturas e escravocratas; poder, quem sabe, queimar vespas ainda enrustidas pelos cantos da casa, esta que sempre vem dentro da gente.
        Abraço.

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        1. Tão fácil quanto seria falar de ti, outra pessoa maravilhosa com quem também tive o privilégio de compartilhar tempo da minha vida. Abraço, minha querida!

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  2. Solon, queria simplesmente curtir o texto, mas para isso WordPress pede que eu tenha um contrato com eles…
    Então escrevo aqui: curti muito!

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    1. Obrigado Analice! E vou ver o que pode estar acontecendo, porque outras pessoas têm curtido e nunca soube de exigência alguma de contrato. Entrando pelo link lateral, onde tem os nomes do que foi postado (clicar no que escolher), basta acompanhar até mais abaixo do final do texto. Tem uma caixinha com essa possibilidade. Abraço!

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      1. He, he, he, realmente as torradinhas com presunto, queijo e ovos que a minha saudosa mãe fazia pra gente, estarão sempre em minhas lembranças! Ela era craque nisso também! Bem lembrado! Sobre seu comentário, a recíproca é verdadeira! Abraços!!!!!!!!!!!!!!

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  3. Tive pouco tempo para conhecer a trajetória de vida do BIER, mas o suficiente para considerá-lo um grande amigo! A história da vespa eu não conhecia, mas conheci muitas outras bem engraçadas, que volta e meia ele deixava escapar! Pelo belo relato do Solon, percebi que eu não me enganei, o cara tem um belíssimo e elogiável currículo! Lendo este texto, lembrei-me com saudosismo, desses bons tempos aqui em Nova Prata, inclusive da nossa inesquecível e aconchegante Cantina Itália da família Bocchi. Lembro inclusive, do dia em que o Solon veio até minha casa, para me conhecer e em seguida me incentivar a tentar ser apresentador de um programa na nossa Rádio Prata, justamente em dias bem difíceis da minha vida! Lembro do início do Jornal Correio Livre e também do dia que fui apresentado ao amigo Bier. Uma bela viagem no tempo! Obrigado pelo registro, amigão! Abraços!
    OBS: A minha permanência na rádio Prata, foi de exatos 30 anos!

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    1. Rogério! Foi uma honra muito grande o convite ter sido aceito e termos trabalhado um bom tempo juntos. Aprendi muito contigo. E aproveitei as torradas maravilhosas feitas pela dona Helena, quando ia te visitar. Isso sem contarmos as festas nas quais estivemos juntos. Também me é muito caro continuar tendo a tua amizade, mesmo agora o convívio sendo menor do que se gostaria. Grande abraço!

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  4. Também tenho boas lembranças do Bier! Num acampamento jovem luterano em Não Me Toque(RS) . Bons tempos ! Em 1982 !

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