Uma voz autêntica e que destoa da mesmice que às vezes parece assolar os lançamentos literários. Uma autora jovem, que se mostra consistente ao seguir caminhos que fogem ao lugar comum, ao modismo. Essa é Ana Paula Maia, uma carioca de 42 anos que conseguiu a proeza de vencer o concorrido Prêmio São Paulo de Literatura duas vezes seguidas, nos últimos dois anos. Com obras que, como se fossem premonições, têm uma relação umbilical em seu conteúdo com o momento que estamos vivendo no mundo e, em especial, no nosso país – porque aqui à pandemia soma-se um tipo de caos social, um desconforto que sempre esteve presente e a circunstância traz à tona, como dejetos que retornam aflorando à superfície de um canal por onde escoa esgoto.

O livro vitorioso em 2018 é Assim na terra como embaixo da terra, que fala de homens confinados num lugar no meio do nada. Uma penitenciária que está por ser desativada e que, como se tivesse sido esquecida pelo sistema, permite que o encarregado pelos presos estabeleça ele mesmo normas e limites. Algumas vezes, para se ocupar e combater o próprio tédio, libera um dos presos para que fuja e seja caçado por ele. A morte do detento abatido a tiros não será notada, o cadáver não será reclamado. A terra vai comer o seu corpo, assim como o tempo já havia devorado suas esperanças. Todos estão sempre esperando algum comunicado oficial, sobre o presídio e sobre eles próprios, mas o governo nunca responde, nunca se manifesta.

Essa é a reprodução ao extremo da máxima direitista que afirma ser bom o bandido morto. Seu sangue não vale nada, mas ferve no calor insuportável do lugar. A jaula só abriga conflitos e a total insanidade só termina com o abate. A ironia maior é que a construção fora erguida no local de uma antiga sede de fazenda. O chão já estava repleto de escravizados que tombaram vitimados por excessos no passado. E continua sendo regado com o mesmo sangue negro. Nunca houve tentativa de recuperar ninguém e a distância, o total isolamento social, apenas confirma a destinação ao esquecimento. A história é kafkaniana e curta: tem apenas 144 páginas e foi publicada pela Editora Record.

O segundo livro premiado é Enterre Seus Mortos. Conta a história de dois homens que trabalham recolhendo corpos de animais, vítimas de atropelamentos nas estradas – um deles, por sinal, ex-padre que fora excomungado. As carcaças são removidas com a raspagem do asfalto, jogadas na carroceria de sua caminhonete e levadas para um galpão onde são trituradas. O problema aparece quando eles descobrem que também existem corpos humanos jogados às margens das rodovias. O que fazer com eles? Para quem informar e o que dizer? Ninguém parece transitar pelas redondezas, exceto eles próprios. Sua companhia é o céu e o silêncio, esse idêntico ao da sociedade perante o sumiço de indesejados.

A maior dúvida dos dois homens é sobre o que pretendiam os mortos. Para onde eles iriam, se nada existe ao redor, se não há destino provável por perto? Mesmo sendo pessoas brutalizadas pela vida, ambos entendem que não é possível deixar os corpos à disposição de animais que os devorem. Buscam então dar destino melhor aos esquecidos, sendo a religião assunto tangenciado no texto, também de forma crítica, com o peso que a culpa coloca nos ombros das pessoas. A questão do batismo é abordada, com a percepção do paradoxo da pureza ser alcançada com o mergulho nas águas de um rio imundo. Outra história curta, com 136 páginas, esta publicada pela Companhia das Letras.

São dois livros pesados, que demandam estômago para que sejam lidos. Mas nada muito mais do que é exigido para que se digira os noticiosos que a televisão joga dentro das nossas salas, todos os dias. Por isso merecem mesmo a recomendação. Agora, me caíram todos os butiás do bolso quando eu descobri o nome do livro que ela havia escrito antes destes dois citados, em 2013: De Gado e de Homens. A mulher só pode ser a reencarnação de uma pitonisa grega, talvez a original Pythía (Serpente), reconhecida pelas profecias certeiras que fazia, ao ser inspirada diretamente pelo poderoso Apolo, uma vez que era a sacerdotisa do templo a ele dedicado, em Delfos. Um dia ainda visito o local, situado nas costas do monte Parnaso.

24.04.2020

8 Comentários

  1. Achei super impactantes os temas escolhidos por esta autora. Ela não desvia o olhar de uma dor que seria desvastadora para a maioria dos mortais. Ficou muito apropriada a alusão a Pythia.

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